Saiu no NP

Fogo infernal deixa 93 mortos em Cubatão

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Em fevereiro de 1984, o bairro de Vila São José, em Cubatão (município litorâneo de SP), foi cenário de uma das maiores catástrofes ocorridas no país. Um incontrolável incêndio iniciado na noite do dia 24 -e que se estendeu até a manhã do dia seguinte-, causado pelo vazamento de 700 mil litros de gasolina em um duto de uma refinaria da Petrobras localizada próximo à região, deixou 93 mortos e transformou em cinzas cerca de 600 barracos que formavam o bairro, na época conhecido como Vila Socó.

Os números do incêndio, apurados pela Polícia Militar perante órgãos do Estado e da Prefeitura de Cubatão, até hoje são contestados por entidades e testemunhas que vivenciaram o episódio. Para eles, a quantidade de óbitos ultrapassa o número de 400 vítimas, uma vez que informações paralelas às oficiais relatavam que mais de 300 pessoas - em sua maioria crianças - desapareceram após a tragédia.

Crédito: Matuiti Mayezo - 25.fev.1984/Folhapress
Moradores da Vila Socó vasculham os escombros à procura de pertences

O acidente foi destaque em toda a imprensa. O "Notícias Populares", que tinha vigorosos 20 anos naquele final de fevereiro, designou sua equipe de repórteres para cobrir o monstruoso desastre, o que resultou na manchete "Inferno de fogo torra quase 200 em Cubatão", publicada pelo jornal em 26 de fevereiro.

Contrariando os dados oficiais, que na ocasião eram de 68 mortos, o "NP" considerou um iminente aumento no número de óbitos, "pois dezenas de vítimas haviam sido internadas em estado desesperador e praticamente sem chances de sobrevivência", afirmava o periódico. "Além disso, haviam muitos desaparecidos, cujos corpos estariam em meio ao lamaçal e as cinzas em que se transformou a favela, tamanha a calamidade.

A Vila Socó ficava à margem da via Anchieta, sobre uma faixa de mangue de aproximadamente 2.000 m x 80 m. No local, moravam pouco mais de 6.000 habitantes distribuídos em cerca de 600 barracos, segundo os dados divulgados pelas autoridades na época. Mas as informações não correspondiam aos números anunciados por parte dos sobreviventes, que estimavam em até 12 mil o número de moradores e entre 1.200 e 2.500 a quantidade de barracos que compunham a favela. As estimativas, no entanto, não foram consideradas pelos órgãos que investigavam o desastre.

A maior parte da favela era sustentada por palafitas fincadas por quase todo o mangue. Os barracos eram ladeados por pontes (ou passarelas) de madeira, construídas para a circulação dos moradores.

Crédito: Folhapress
No dia 28 de fevereiro, quatro dias após incêndio, moradores da Vila Socó procuravam por parentes desaparecidos

O "NP" relatou que a maioria dos mortos era composta por idosos e crianças, que não conseguiram fugir das gigantescas chamas que tomaram conta de praticamente toda a área. E a lama, que teve o seu volume aumentado por causa da chuva que caiu durante o incêndio, dificultou a fuga dessa parcela de vítimas. O jornal apurou ainda que, apesar de o fogo ter sido controlado pelos bombeiros na madrugada do dia 25, algumas chamas ainda persistiram durante toda a manhã.

Conforme investigações realizadas depois do acidente, uma das prováveis causas do incêndio teria sido uma falha de comunicação entre um funcionário da Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão, e uma das pessoas responsáveis pela operação de um dos terminais da estatal, localizado no Porto de Santos, para onde seria transferida uma grande quantidade de gasolina naquele dia. A refinaria e o terminal eram interligados por dutos que passavam debaixo da favela.

Horas antes do desastre, quando milhares de litros de gasolina começavam a ser transportados de Cubatão para o terminal de Santos - por um dos dutos -, uma válvula do terminal, que deveria estar aberta para receber o combustível, estava totalmente fechada, o que teria causado uma forte pressão no duto, culminando no seu rompimento e, consequentemente, no vazamento de cerca de 700 mil litros de gasolina, que se espalharam rapidamente pelas lamas do mangue. A partir daí, em poucos instantes um fogaréu se alastrou por toda a favela. A hipótese de má conservação dos dutos, construídos nos anos 40, e que havia anos não passavam por manutenção, também não foi descartada na investigação.

Outro fator agravante, com relação ao socorro às vítimas, foi a negligência da Petrobras, que, ao ser alertada por moradores logo no início do incêndio, rebateu que não poderia tomar nenhuma decisão até a chegada de seu engenheiro responsável, que residia em Santos na época. De acordo com um tenente da Polícia Militar, que coordenava os socorros na favela, a espera de mais de uma hora pela chegada do profissional complicou ainda mais os trabalhos de busca.


O "Notícias Populares" informou que muitos dos mortos dificilmente seriam identificados, já que parte considerável das vítimas havia sido totalmente carbonizada. Alguns corpos, de acordo com testemunhas, reduziram-se a um montante de cinzas de cerca de 30 centímetros.

No dia 27 de fevereiro, o "NP" publicou mais uma manchete com novas informações da tragédia. Intitulada "O dia seguinte em Cubatão: 300 mortos", o jornal aumentou em mais 100 o número de vítimas pelo incêndio. Os novos dados, conforme anunciados pelo jornal, foram cedidos por um delegado de polícia de Cubatão e por uma das equipes de bombeiros que trabalharam nas buscas. Fato é que dias depois o número foi oficializado em 93 óbitos.

A última reportagem sobre o incêndio foi publicada pelo "Notícias Populares" no dia 28 de fevereiro, quando informou o resgate de outros quatro corpos que estavam enterrados em meio ao mangue.

Três meses depois do acidente, os promotores criminais Marcos Ribeiro de Freitas e José Pedreira Passos, que acompanharam as investigações, pediram à Justiça o indiciamento de 24 pessoas como sendo as responsáveis pela tragédia, entre elas o então presidente da Petrobras, Shigeaki Ueki, e o então prefeito de Cubatão, José Oswaldo Passarelli. Ueki, que entrou com pedido de habeas corpus, ficou isento do processo, e Passarelli viu o juiz Décio Leme de Campos rejeitar o pedido de seu indiciamento. Em agosto de 1985, a 2ª vara de Cubatão condenou 12 funcionários da Petrobras pelas 93 mortes, com penas de sete meses a um ano de prisão. Contudo, um ano depois, todos foram absolvidos.

Crédito: Lalo de Almeida - 11.out.2001/Folhapress
Crianças brincam em espaço que abrigava parte da favela incendiada nos anos 80

Em junho de 2014, o acidente da Vila Socó entrou em pauta na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, numa audiência pública promovida pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. O objetivo da discussão é reabrir o caso e apurar as reais dimensões do acidente, que podem ter sido abafadas pelo regime militar que ainda vigorava naquele período.

Embora a Justiça ainda não tenha apontado qualquer responsável pelo incêndio, a Petrobras teve que indenizar todas as vítimas. Grande parte dos sobreviventes reconstruiu suas casas no mesmo local do incêndio.

Hoje, constituída por casas de alvenaria, ruas asfaltadas e um posto de saúde, a Vila São José não lembra em nada a Vila Socó de outrora. No entanto os dias 24 e 25 de fevereiro de 1984 viraram marcas irremovíveis na memória daqueles que sobreviveram a uma das mais infernais tempestades de fogo daquela década.

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