A lei do mais forte
O "Notícias Populares" do dia 26 de setembro de 1980, na seção "De olho na Câmera", que informava o leitor sobre as novidades do mundo do cinema, divulgava naquele dia a estreia do então mais recente filme do cineasta argentino (naturalizado brasileiro) Hector Babenco, que na época já havia lançado os longas "O Rei da Noite" (1975) e o bem sucedido "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia" (1978).
Agora, era a vez da exibição do impactante e hoje emblemático "Pixote, a Lei do Mais Fraco", no extinto cine Gazetinha (av. Paulista), em São Paulo.
Além de destacar os mais relevantes personagens, a seção publicou uma pequena nota com o enredo da nova produção de Babenco: "... a ação começa com alguns menores sendo recolhidos a um reformatório de São Paulo. Entre os principais personagens do filme estão: Dito, Lilica, Chico, Fumaça e Pixote [interpretados respectivamente pelos atores Gilberto Moura, Jorge Julião, Zenildo Oliveira Santos, Edílson Lino, e o protagonista Fernando Ramos da Silva], este um menino de apenas 10 anos de idade. O filme é a história de suas vidas e sua luta pela sobrevivência".
Fernando Ramos da Silva, que viveu o personagem-título do drama, era morador da favela de Vila Ester, em Diadema, Grande ABC paulista. Filho de uma família de nove irmãos, tinha 10 anos no início das gravações, em 1979.
"Pixote, a Lei do Mais Fraco" trata da violência física e moral praticada contra menores de um reformatório. A morte de um dos internos resulta em rebelião, e parte dos menores consegue a fuga. Entre o grupo de fugitivos está Pixote, que, agora livre dos maus-tratos sofridos pelo inspetor daquela unidade de recuperação, passa a se envolver em diversos crimes nas ruas de São Paulo e do Rio, trajetória que se tornaria, depois, realidade na vida do pequeno ator.
Parte dos jovens que atuaram no filme veio das periferias da Grande São Paulo, todos selecionados entre cerca de 1300 candidatos. O filme contou ainda com a participação dos principiantes Israel Feres David, no papel de uma espécie de cover do cantor Roberto Carlos, e Zinho Barbosa, que interpreta o personagem Mirandinha no filme.
A parte adulta do elenco era composta por Jardel Filho (1927-1983), Tony Tornado, Elke Maravilha, Ariclê Perez (1943-2006), Marília Pêra, Rubens de Falco (1931-2008), João José Pompeu (1936-1991) e Beatriz Segall.
"Pixote, a Lei do Mais Fraco" foi inspirado no livro "Infância dos Mortos", do jornalista José Louzeiro, e figura como um dos longas brasileiros mais representativos de todos os tempos. Chegou a ser exibido nos Estados Unidos e Europa, conquistando inúmeros prêmios pelo mundo.
No dia 29 de setembro de 1981, momento em que o filme estava em cartaz em Nova York (EUA) com grande cobertura da imprensa local, o "NP" noticiou duas premiações internacionais concedidas ao filme de Babenco. A matéria tratava da conquista do Makhila de Ouro de melhor filme estrangeiro, no 3º Festival de Cinema Ibérico e Latino-Americano de Biarritz, na França. O prêmio foi dividido com o longa mexicano "Mojado Power", de Afonso Arau. No mesmo evento, "Pixote" foi agraciado sozinho com o Grande Prêmio de Público, na categoria de melhor filme. Antes havia ganho o Leopardo de Prata, no Festival de Lecarno, na Suíça.
No mesmo ano faturou os prêmios de melhor filme estrangeiro de 81, dado pela Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles, e os de melhor filme e melhor atriz para Marília Pêra, pela Associação de Críticos de Cinema de Boston, além do Prêmio de Crítica no Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha.
Por razão da grande repercussão que "Pixote" gerou no ano de sua estreia, a Globo logo tratou de firmar contrato de um ano com o protagonista Fernando Ramos da Silva. A pedido da emissora, o garoto agora com 11 anos, foi morar no Rio. Acabou contratado para atuar na novela "O amor é nosso", exibida em 1981 pela emissora. Entretanto foram raras suas aparições no folhetim. Antes do término das gravações, a Globo decidiu revogar o contrato com o ator, que foi dispensado sob a alegação de inaptidão artística.
Desiludido, o pequeno ator voltou para a realidade amarga em que vivia no município de Diadema (SP). Com o dinheiro recebido pela participação em "Pixote" e de trabalhos feitos para o teatro, não conseguiu uma melhora significativa em sua vida.
Na edição de 11 de março de 1982, o "NP" reproduziu a indignação da vendedora de bilhetes de loteria Josefa Carvalho da Silva, mãe do mais novo astro do cinema: "É um absurdo que o meu menino, o Fernandinho, tenha sido o ator principal de um filme que está rendendo muito dinheiro aqui e no exterior sem que sua vida seja melhorada em nada. Há dias que temos dificuldade até para comer. Hoje não houve nem pão para as crianças".
Ainda na mesma edição, o jornal abriu espaço igual para a argumentação de Hector Babenco, roteirista de "Pixote": "...já esperava um desfecho dessa natureza... eu não sou pai do Fernandinho, e nem tenho por que adotar uma atitude paternalista... um contrato foi formado e seguido escrupulosamente por nossa parte... se o Fernandinho veio de uma favela e voltou para uma favela, isso não é culpa minha."
Fernando chegou a atuar no filme "Eles não usam Black-Tie", de Leon Hirszman (1937-1987), onde fez papel secundário.
A coluna "TVNENOS...", publicada no "Notícias Populares" em 28 de abril de 1982, relatou que, depois de um curtíssimo período trabalhando como contrarregra no programa de Flávio Cavalcanti, na TV Bandeirantes, Fernandinho, como era chamado pela mãe, havia procurado a emissora de Silvio Santos em busca de emprego.
Segundo a coluna, o ator e sua mãe chegaram a negociar com a direção do núcleo de novelas da emissora e que estava praticamente certo o ingresso de Fernando em uma das próximas histórias a serem gravadas no canal de Silvio Santos, o que não se concretizou.
Em 1983, fez ponta no filme "Gabriela, Cravo e Canela. Porém não se destacou.
Conturbada com situação do filho e da família, Josefa Carvalho entrou com uma ação contra Babenco, na qual exigia 5% da renda do filme. Porém, em 83, após um acordo com Hector Babenco, a mãe do ator requereu desistência do processo.
A inquietude do ator misturada com a opressão e a falta de estrutura psicológica o levaram em 1984 a reviver, agora na vida real, o personagem Pixote que tanto o angustiava. Em maio daquele ano, Fernando foi preso por assalto a uma residência em Diadema. Liberado depois de dois dias na delegacia, denunciou ter sofrido choque elétrico por parte de três investigadores, para assumir outros crimes que, segundo ele, não havia praticado.
Em junho de 84, um mês após a prisão, Fernando e sua família se mudaram para o Rio, onde foram presenteados com uma casa doada pelo então prefeito do município de Duque de Caxias, Hideckel de Freitas. A mãe do ator ganhou um emprego de faxineira em um asilo da cidade, e Fernando, um curso no Teatro Tablado, da dramaturga Maria Clara Machado (1921-2001). No entanto compareceu pouco às aulas.
Em 4 de setembro do mesmo ano, o "Notícias Populares" relatou que a mãe de Fernando vendera a casa que ganharam em Duque de Caxias, no Rio. A reportagem dizia: "E, neste fim de semana, sem ninguém esperar, segundo informações do próprio prefeito [Hideckel de Freitas], 'Pixote' e sua família foram ao Rio, venderam a casa por 15 milhões de cruzeiros e se mandaram pra São Paulo. O prefeito afirmou estar 'bestificado'".
A mãe do ator declarou que tomou a decisão por razão do seu salário em São Paulo ser três vezes maior do que o recebido no asilo do Rio. Disse ainda que com o dinheiro da venda do imóvel do Rio, reformaria a casa de São Paulo, e o que sobrasse guardaria em uma caderneta de poupança.
Em julho de 85, agora com 17 anos e longe da TV e do cinema, Fernando é detido mais uma vez pela polícia, agora por porte ilegal de arma, um revolver calibre 32. Era suspeito de ter assaltado duas casas em Diadema, mas negou os crimes. Sobre a arma, argumentou que sofria perseguição da polícia e ameaças de morte de inimigos. Mas foi solto pelo delegado responsável.
A partir daí as portas se fecharam de vez para Fernando, que agora, junto de sua companheira Maria Aparecida Venâncio da Silva, com quem mantinha um relacionamento desde os 14 anos, aguardava para o fim do ano o nascimento da primeira e única filha do casal.
Sem o olhar inocente e tímido exibido nas telas do cinema e da televisão e próximo de atingir a maioridade, Fernando passou a trabalhar como ajudante de motorista de caminhão. Entretanto a esperança de voltar a atuar nas telas ainda era um desejo grande em sua vida. Em 1986, para sustentar a família, abriu um bar com a esposa, em Diadema, onde viviam. Mas o momento derradeiro de Fernando Ramos da Silva, que viveu o personagem principal de um filme que correu o mundo, estava próximo.
No dia 25 de agosto de 1987, o ator do premiado "Pixote, a Lei do Mais Fraco", foi executado com oito tiros pelas mãos da polícia. Ele tinha 19 anos e foi morto dentro da residência onde se refugiara depois de perseguido por suspeita de assalto.
A edição do "NP" de 26 de agosto, conforme versão da polícia, relatou que Fernando Ramos da Silva havia sido morto numa troca de tiros, após uma perseguição. A versão foi contestada por três moradoras da casa onde Fernando foi acuado pelos policiais. As testemunhas declararam que Fernando não portava arma no momento dos disparos.
Dias depois a perícia constatou que não havia vestígios que evidenciassem uma possível troca de tiros entre Fernando e a polícia naquela casa. Porém o resultado do exame residuográfico, feito para detectar se houve disparos por parte de Fernando contra os policiais, deu positivo, o que não significou que ele tivesse efetuado disparos naquele dia.
De acordo com o laudo emitido pelo IML (Instituto Médico Legal), a maior parte dos disparos foi efetuada de cima para baixo, sugerindo que Fernando estava agachado ou deitado no momento em que foi assassinado.
Apesar de os policiais terem mudado por duas vezes a versão da ocorrência e ainda atrapalhado as investigações quando trocaram as armas usadas na execução, eles nunca foram presos, embora condenados.
No dia 24 de abril de 1988, o "Notícias Populares" divulgou o lançamento do livro "Pixote Nunca Mais - A Vida Verdadeira de Fernando Ramos da Silva" (editora Global), de Maria Aparecida Venâncio da Silva, viúva de Fernando. O livro, que começou a ser escrito antes de o marido ser morto, foi relançado em 1998, na 15ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
Outras lembranças vieram com o filme "Quem Matou Pixote" (1996), de José Joffily, e o documentário "Pixote in Memoria" (2006), de Felipe Briso e Gilberto Topczewski, sobre os 25 anos do filme de Hector Babenco.
Hoje, passados 34 anos de sua estreia, "Pixote" continua atual no que diz respeito à questão do menor abandonado.
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