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Música
Descrição de chapéu
The New York Times

O ano em que os homens do pop desmantelaram a própria masculinidade

Harry Styles, Bad Bunny e Jack Harlow fizeram sucesso ao brincar com as normas de gênero

Da esq., Harry Styles, Bad Bunny e Jack Harlow - Reuters/AFP
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Lindsay Zoladz
The New York Times

Em abril, durante sua apresentação como atração principal do festival Coachella, o príncipe reinante do pop, Harry Styles, levou ao palco uma convidada surpresa, Shania Twain, para cantar um dueto escolhido com a intenção de provocar: "Man, I Feel Like a Woman" [cara, eu me sinto mulher].

Vestindo um macacão com lantejoulas prateadas que exibia boa parte de seu peito, Styles rodopiou, se pavoneou e cantou com força a letra da canção, que se tornou um hino. "Essa dama me ensinou a cantar", ele disse à plateia de mais de 100 mil espectadores, quando a música acabou. "E também me ensinou que os homens são um lixo."

A apresentação foi divertida, atraiu manchetes e teve alguma coisa de radical: é difícil imaginar o predecessor de Styles na geração anterior, Justin Timberlake —ou mesmo Justin Bieber, o sucessor de Timberlake—, brincando de maneira tão descontraída com as normas de gênero. Isso se deve, em parte, ao fato de os dois Justins terem abraçado gêneros como o hip-hop e o R&B –nos quais esse tipo de experimentação costuma ser menos bem recebida– com muito mais convicção do que Styles. Mas também se deve ao fato de que as forças culturais que moldam as normas e expectativas quanto ao que um astro pop masculino pode e deve ser estão evoluindo.

Na música, tivemos um ano dominado por um punhado de estrelas femininas de primeira grandeza (em termos críticos, o destaque foi a elogiadíssima odisseia dançante "Renaissance, de Beyoncé, e em termos comerciais o maior sucesso foi o pop sintetizado inquieto de Taylor Swift em "Midnights"). Os principais astros pop masculinos —Styles, Bad Bunny e Jack Harlow– encontraram sucesso ao apresentar desafios refrescantemente subversivos à masculinidade antiquada.

Styles e Harlow parecem astutamente cientes sobre a melhor maneira de se posicionarem como galãs em um momento cultural no qual ser homem –especialmente um homem heterossexual e branco– implica enfrentar um verdadeiro campo minado de possíveis erros, ofensas e privilégios imerecidos. Bad Bunny, de modo ainda mais subversivo, rasgou o manual de regras que dispõem que astros pop devem cantar em inglês e ofereceu ao público uma visão mais expansiva de gênero e sexualidade.

O superastro porto-riquenho, cujo sucesso de verão "Un Verano Sin Ti" ocupou o topo da parada de sucessos da Billboard por mais semanas do que qualquer outro disco em 2022, rejeitou alegremente as limitações do machismo. Em vez disso, ele abraçou a fluidez de gêneros em termos de moda, criticou a agressão masculina em suas canções e vídeos, e até trocou beijos com um de seus dançarinos de apoio durante uma apresentação no MTV Video Music Awards este ano —decisões que carregam peso adicional se considerarmos que a estética do pop que ele produz está enraizada no reggaeton, um gênero que continua apegado à heteronormatividade.

Styles também conquistou fãs e admiradores ao transformar a sua expressão de gênero em uma espécie de parque de diversões, seja ao usar um vestido ao posar para a capa da revista Vogue, seja ao se recusar a rotular sua sexualidade, ou ao inverter o roteiro habitual da relação entre criador cultural masculino mais velho e musa mulher mais jovem, em sua relação muito comentada com Olivia Wilde, 10 anos mais velha, que o dirigiu no filme "Não Se Preocupe, Querida". Nada disso prejudicou os resultados do cantor em termos de negócios: "As It Was", de Styles, foi o single que passou mais tempo consecutivo no topo da parada Billboard em 2022 e a canção mais ouvida no Spotify este ano.

Mas a linha que separa ser um aliado nas causas de gênero e um simples bajulador está se tornando cada vez mais fina, e os fãs não hesitam em protestar online quando ela é cruzada. Styles e Bad Bunny foram acusados do crime muito contemporâneo de "queerbaiting", ou seja, de cultivar uma falsa mística em torno de sua sexualidade a fim de atrair a atenção de uma base de fãs LGBTQ. Por outro lado, enfatizar demais a heterossexualidade e o estereótipo do macho alfa acarreta outros riscos, especialmente em um momento pós-MeToo. Qual é a coisa certa a fazer, para um homem?

Harlow, 24, um rapper nascido no Kentucky, dedicou o ano de 2022 a tentar responder essa pergunta. Como rapper, ele mostra grande destreza técnica, além de um carisma acessível e cabelos repletos de cachinhos ao modo de Shirley Temple, e é conhecido por fazer escolhas artísticas que destacam suas habilidades e transmitem sua seriedade como MC. Ele também cultiva um personagem de paquerador irreprimível, e especialmente interessado em mulheres negras. Sua tentativa de passar uma cantada na cantora Saweetie no tapete vermelho do BET Awards foi muito comentada, ele fez numerosas participações especiais nos "livestreamings" da rapper Doja Cat no Instagram, e até parodiou sua reputação ao participar do programa "Saturday Night Live" como apresentador, e interpretar a ele mesmo em um esquete que o imaginava tentando seduzir Whoopi Goldberg no set do programa "The View".

A música de Harlow também cultiva ativamente as ouvintes femininas. Como ele explicou em uma entrevista ao The New York Times neste ano, "eu sempre imagino que, se estivesse no carro e a garota por quem eu tenho um ‘crush’ estivesse sentada no banco do passageiro e eu tivesse que mostrar uma das minhas músicas, a música me deixaria orgulhoso?"

Ao longo de todo o seu segundo álbum, "Come Home the Kids Miss You", Harlow se retrata como estiloso e sensível, um homem que mantém as unhas limpas e discute seus encontros amorosos em sessões de terapia. Seguindo a tradição de seu predecessor, Drake, Harlow frequentemente usa o pronome "você" para se dirigir direta e intimamente às mulheres, em suas canções. Seu maior sucesso solo até hoje, "First Class", que passou três semanas no topo das paradas no segundo trimestre deste ano, transformou "Glamorous", sucesso da cantora Fergie em 2007, em um convite cavalheiresco para que uma dama viesse desfrutar de uma vida luxuosa, com todas as despesas por conta de Harlow. "Comigo, você estaria sempre na primeira classe", ele esclarece na letra.

Estilisticamente, a música de Harlow está a um mundo de distância da música de Styles, mas os dois compartilham de uma espécie de glorificação da ouvinte feminina, uma atenção lírica ao prazer da mulher e uma insistência sutil em que são parceiros mais cuidadosos do que todos aqueles outros homens que, na terminologia de Styles (e em baladas altamente empáticas como "Boyfriends" e "Matilda"), não passam de "lixo".

Em certo sentido, isso certamente representa um progresso. Considere que os sucessos iniciais de Timberlake no começo dos anos 2000 envolviam atacar excessivamente sua ex Britney Spears, ou que uma apresentação na qual ele fingia estar exercendo um intenso domínio heterossexual sobre Janet Jackson não teve praticamente qualquer efeito sobre a carreira dele mas quase acabou com a carreira da cantora. A colaboração de Harlow com Lil Nas X, um astro pop abertamente gay, seu apoio público a ele, e até mesmo a bajulação às suas parceiras mulheres estão a um mundo de distância de seu predecessor Eminem, que tentava facilitar seu complexo encaixe como homem branco em um gênero predominantemente negro por meio de ataques às mulheres e aos "queers". Misoginia e homofobia já não são tão boas para os negócios —graças a Deus.

É difícil imaginar homens como esses cometendo os mesmos erros que seus predecessores, e o excesso de correção é de alguma forma bem-vindo, se considerarmos a alternativa (Bad Bunny, uma vez mais, assumiu riscos ainda mais corajosos, por exemplo ao criticar veementemente o governo porto-riquenho por sua resposta pífia aos blecautes que assolaram toda a ilha).

Mas privilégio exercido com responsabilidade continua a ser privilégio, no final das contas. E a música de Styles e Harlow frequentemente expõe esse problema por conta de sua relativa falta de peso, e da sensação de que ela existe em um espaço livre de qualquer grande preocupação existencial. As canções de Styles, em particular, parecem ocas e desprovidas de qualquer introspecção; a maioria das músicas que compõem o álbum "Harry's House" desaparecem como nuvens passageiras. O foco da música de Harlow oscila entre garotas e ego, com pouca menção às declarações políticas mais arriscadas que ele faz em eventos de tapete vermelho (lastimando a homofobia) e nas mídias sociais (onde participou de protestos exigindo justiça no caso do assassinato de Breonna Taylor).

O fracasso em se ver como parte de um problema maior também é um sintoma de privilégio. Mesmo que ele esteja usando lantejoulas, quando um homem declara que "os homens são lixo", isso é apenas uma forma muito sutil de dizer "nem todos os homens". Mas e quanto ao homem que está fazendo a declaração?

Em "Part of the Band", um single irrequieto e prolixo lançado neste ano pela banda britânica The 1975, o vocalista Matty Healy imagina ouvir um trecho de conversa fiada entre duas mulheres jovens: "Gosto de meus homens como gosto de meu café/cheio de leite de soja e tão doce que não vai ofender ninguém". A implicação é que Healy decididamente não é um desses homens, e é realmente difícil imaginar um ouvinte —particularmente se ele não for homem– que ouça as 11 faixas de "Being Funny in a Foreign Language", o álbum do The 1975, sem se irritar com alguma coisa que Healy diz. Basta um exemplo: "Achei que a gente estava brigando, mas parece que na verdade era ‘gaslighting’". (Argh.)

Mas as reflexões de Healy, muitas vezes, trazem algo que falta na música de Harlow ou Styles: elas oferecem um senso genuíno de que ele está se esquadrinhando, um monólogo interno ativo sobre o que significa ser homem neste momento do século 21. As canções de Healy são, como expressou a crítica Ann Powers em um astuto ensaio que traça a linhagem cultural do "homem escroto", uma espécie de escavação das "maldições e bênçãos de sua existência sexuada". Sob o microscópio implacável de Healy, a masculinidade branca mais ou menos heterossexual é, felizmente, liberada de seu status como a condição humana padrão e, em lugar disso, se torna uma curiosidade a ser explorada e estudada, para expor suas contradições internas e ansiedades latentes.

"Será que sou ‘woke’ ironicamente?", Healy se pergunta mais tarde em "Part of the Band". "Ou sou o alvo da minha própria piada? Ou sou só um cara mediano e magrelo, que chama seu ego de imaginação depois da cocaína?" Por mais que as as afirmações de Healy possam irritar, ele pelo menos é homem o bastante para fazer a pergunta.

Tradução de Paulo Migliacci

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