Olivia Rodrigo mostra em 'Sour' como é difícil encontrar seu verdadeiro eu
Álbum emprega com competência a doçura do pop e o amargor do punk
Álbum emprega com competência a doçura do pop e o amargor do punk
Nos últimos meses, Olivia Rodrigo, 18, vem cinzelando uma história sobre amor jovem que termina em amargura. Com a ondulante balada “Drivers License” —seu single de estreia, um imenso sucesso que chegou ao mercado no topo da parada Billboard Hot 100 e manteve o posto por oito semanas— e com a melancólica e sofrida “Deja Vu” (uma faixa talvez ainda melhor), ela retratou com perfeição a agonia do colapso e a ansiedade de assistir ao seu velho par reconstruindo a vida. É um fenômeno doloroso e conhecido de quase todos nós.
Como essas canções, “Enough of You” —faixa de seu nuançado e em muitos momentos excepcional álbum de estreia pela Geffen, “Sour"—, parece falar de uma disputa entre a narradora e a mulher que a substituiu aos olhos e no coração de seu ex.
Mas na verdade a canção gira em torno de outro tipo de competição: entre as diferentes versões de nosso eu que ostentamos ciclicamente, a depender de quem esteja ao nosso redor.
Rodrigo começa por uma confissão retrospectiva: “eu usava maquiagem quando a gente saía/ Porque achava que você gostaria mais de mim/ Se eu me parecesse com as rainhas do baile que você um dia amou”.
A partir daí, a canção se torna uma elegia a um eu que já não se encaixa. Rodrigo canta em voz trêmula, sobre um acompanhamento firme mas relutante de violão: “Não quero sua simpatia”, ela conclui. “Só me quero de volta”.
“Sour” emprega com igual competência a doçura do pop e o amargor do punk, e no álbum Rodrigo estuda o eu inseguro, e a maneira pela qual as pessoas —principalmente os jovens, mas não só eles— se contorcem para se enquadrar às formas que lhes são impostas. O tema do disco é o quanto custa ser a argila, em vez de o molde.
Para Rodrigo, que vem interpretando versões alternativas de si mesma em público pelo menos desde a primeira temporada de “Bizaardvark”, no Disney Channel, em 2016, o tema parece natural.
Ela é uma estrela pop ideal para a era das personalidades, subpersonalidades e metapersonalidades; para a era do Instagram falso e do spam; para a era de experimentar novas identidades e descartá-las quando não satisfazem.
“Sour” é um álbum sobre aceitar finais alternativos e aceitar aquilo em que você se torna ao trocar uma ideia sobre você por outra, e ao mesmo tempo sorrir e cuidar de manter sua carreira, ou carreiras, no rumo.
Rodrigo teve de fazer tudo isso sob o brilho repentino e intenso de múltiplos holofotes. Ainda que ela seja uma das figuras de destaque no elenco da Disney há alguns anos, mais recentemente como Nini Salazar-Roberts, a protagonista feminina de “High School Musical: The Musical: The Series”, o sucesso de “Drivers License” lhe valeu crescimento exponencial, e a necessidade de alternar seus diversos eus.
Além de sua personalidade íntima, verdadeira e imutável, há Rodrigo a cantora, e Rodrigo, o espetáculo público, alvo de interesse cada vez mais intenso dos jornais sensacionalistas. Há Rodrigo como Nini, e Nini como Gabriela, a personagem que ela interpreta na peça que acontece dentro da série.
Cada uma dessas encarnações tem uma narrativa distinta. Cada uma delas representa parte da maneira pela qual Rodrigo encara o mundo —e é encarada por ele.
É assim que as coisas são para todos, agora, porém —na mídia social, os adolescentes muitas vezes mantêm contas múltiplas, interpretando versões diferentes deles mesmos em suas interações com conjuntos diferentes de pessoas. Modular constantemente a identidade pessoal é a norma; a ideia de um eu completamente centrado e fixo pode ter ficado no passado de uma vez por todas.
Em “Sour”, Rodrigo encara essa evolução em tempo real. Em “Drivers License”, ela ainda parece insegura quanto ao que deseja se tornar. “Hoje andei de carro pelos subúrbios/e imaginei que estava indo para casa te encontrar”, ela canta, ainda não completamente capaz de abrir mão do amor.
Em “Deja Vu”, e especialmente em seu vídeo, que mostra Rodrigo espionando sua substituta, igualzinha a ela, a cantora parece freneticamente estressada com os paralelos entre o novo relacionamento de seu ex e o relacionamento que ele teve com ela; “Quando você vai lhe dizer/ que fizemos a mesma coisa?” Pelo final da canção, ela começa a sucumbir à ideia de que sua experiência talvez não tenha sido assim tão original, afinal: “Odeio imaginar que eu fosse só seu tipo”.
Seus pares estão jogando o mesmo tipo de jogo. “Que amante terei hoje?/ Você vai me levar até a porta ou me mandar para casa chorando?”, ela suspira sobre um piano atenuado em “1 Step Forward, 3 Steps Back”.
E é em “Drivers License” que essa compreensão se cristaliza inteiramente: “Acho que você na verdade não queria mesmo dizer o que escreveu naquela canção sobre mim”, ela lamenta. Há poucos abalos piores do que descobrir que a pessoa que você amava estava simplesmente interpretando um papel.
O esforço de Rodrigo para manter diferentes personalidades em jogo também é perceptível nas escolhas musicais que ela fez em “Sour”, álbum do qual ela compôs quase todas as faixas, e que foi produzido quase integralmente por Dan Nigro, ex-integrante da banda As Tall as Lions (ele contribuiu para algumas composições).
Ela finca a bandeira de seu eu dividido já na faixa de abertura, a espetacular “Brutal”, que começa com alguns segundos de cordas sóbrias antes de a cantora declarar que “quero que as coisas sejam complicadas”, e é isso que acontece.
Esse cabo de guerra persiste por todo o álbum: canções mais polidas, como os singles e “Good 4 U”, que lembra a banda Paramore, se chocam com trabalhos mais brutos, como “Enough for You” e “Jealousy, Jealousy”.
“Traitor”, um dos pontos altos do disco, é uma canção seca que finge ser bombástica. “Fiquei quieta para ficar com você”, Rodrigo confessa, antes de chegar a uma forma elegante de compreensão, se não de aceitação, de que a pessoa que ela amava a deixou: “Você não me enganou/ Mas é um traidor mesmo assim”.
Esse floreio composicional é emblemático daquilo que Rodrigo aprendeu com Taylor Swift neste álbum (que pode ser resumido como o disco de estreia de Swift refratado por “Red”): como desenvolver uma linguagem precisa para descrever uma situação emocional imprecisa e complexa, e narrar histórias privadas de forma pública.
Há um resíduo de Swift em todo o álbum —quer esteja na maneira pela qual “1 Step Forward, 3 Steps Back” interpola “New Year’s Day”, ou no coro de “Deja Vu”, que lembra “Cruel Summer”. Mas Swift na verdade persiste acima de tudo na lente da compositora— que é infatigavelmente interna.
Rodrigo só a deixa de lado em dois pontos do álbum: em “Jealousy, Jealousy” ela observa de mais longe para avaliar o dano que a mídia social inflige (“eu queria tanto ser você/Mas nem te conheço/ Só vejo o que eu deveria ser”; e na faixa final, “Hope Ur OK”, uma canção melancólica que exibe compaixão mas não se enquadra bem ao álbum tematicamente.
Na primeira temporada de “High School Musical: The Musical: The Series”, Rodrigo tinha uma plataforma segura para interpretar seu desenvolvimento criativo como Nini. (O lamento de Nini, “All I Want”, poderia ter sido o balão de ensaio para a carreira solo de Rodrigo).
No final daqueles episódios, exibidos no final de 2019 e começo de 2020, Nini conquistou o papel no musical escolar e se assentou em um relacionamento duradouro com seu velho amigo Ricky (Joshua Bassett). (Os primeiros singles da cantora foram dissecados em busca de indícios sobre um relacionamento entre ela e Bassett, outra mistura entre seus eus.)
A série, que é narrada em parte como falso documentário, é uma exploração satírica e charmosa da metamorfose adolescente. Como “Hannah Montana”, a série está muito ciente da constante improvisação dos adolescentes, para o melhor e o pior.
Mas na era de ouro do Disney Channel, Miley Cyrus, a estrela de “Hannah Montana”, tinha muito menos acesso direto à sua base de fãs e portanto tinha menos presença pública do que Rodrigo, que pode se comunicar diretamente via TikTok e Instagram.
Isso significa que a vida pública e a vida de Rodrigo como cantora começam a deixar para trás sua velha vida como atriz de série. (Além disso, Rodrigo usa palavrões em suas canções, o que acelera o processo padrão de metamorfose da Disney.)
Na temporada passada, quando Nini enfrentou problemas de confiança, sua melhor amiga Kourtney (Dara Renee) lhe disse que “desde que você descobriu que existem meninos, perde tempo demais tentando se ver pelos olhos deles”.
Rodrigo agora tenta manter diversas vidas em equilíbrio —nova celebridade, nova estrela pop, atriz infantil ainda ativa, e mais. E “Sour” é o primeiro passo rumo a insistir em que o olhar que mais importa é o que ela encontra no espelho, não importa quantas outras pessoas estejam olhando.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci.
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