Música

84% das brasileiras ligadas ao setor musical já foram discriminadas no trabalho, diz pesquisa

ONGs e empresa investem cada vez mais na formação e autoestima das mulheres

Profissionais trabalhando na Casa de Música Escuta as Minas, criada pelo Spotify
Profissionais trabalhando na Casa de Música Escuta as Minas, criada pelo Spotify - Spotify/Divulgação
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São Paulo

Pesquisa realizada Data SIM (Semana Internacional da Música), que reúne dados e informações sobre o mercado musical, mostra que 84% das mulheres brasileiras ligadas ao setor já foram discriminadas no ambiente de trabalho.

Foram 1.450 mulheres entrevistadas para a pesquisa “Mulheres na Indústria da Música no Brasil: Oportunidades, Obstáculos e Perspectivas", realizada em 2019, à qual o F5 teve acesso com exclusividade. O estudo aponta ainda que 63% delas foram afetadas de alguma forma pelo viés de gênero e quase 21% não se sentem confortável no local de trabalho por ser mulher.

Daniela Ribas, diretora de pesquisa do Data SIM, afirma que o levantamento foi realizada em parceria com WIM Brasil e WME (Women’s Music Event). Ela destaca ainda que o assédio sexual foi descrito por 49% das entrevistadas como principal dificuldade na profissão.

O número de mulheres no setor musical no mundo está em torno de 30%, segundo dados da ONG WIM (Women in Music) divulgados em 2019. "Não estamos mais nos anos 1990, quando realmente tinham  menos mulheres na música. Tem muita banda e mulher na parte técnica como iluminação, projeção", afirma a guitarrista e baixista Patricia Saltara, que toca nas bandas In Venus e Weedra.  

Uma das coordenadoras do projeto Girls Camp Rock Brasil, Saltara afirma que o projeto atua no incentivo e na formação de meninas na música. Ela destaca que a cena independente feminina é forte, mas que esse trabalho não é divulgado "porque os homens só escutam homens, e eles estão à frente de festivais, são curadores e donos de produtoras." 

Pesquisa do Spotify aponta que apenas 10% das mulheres que trabalham com música são escaladas para festivais, por exemplo. "É comum os homens respeitarem mais o que é feito por homens em qualquer área e precisamos quebrar essa estrutura. É um longo caminho", diz Saltara.

Há 30 anos no setor musical como compositora e instrumentista, Delia Fischer, diz que a situação já melhorou. No início da carreira, ela afirma que ouvia frases como "você toca como homem" ou "você conduz uma orquestra como homem" e que era comum ver homens procurando mulheres instrumentistas para “embelezar a banda”.

"Hoje pega muito mal falar isso, mas as mulheres continuam tendo pouca visibilidade. Isso é fato”, afirma a artista, ao recordar que na infância não podia chega perto das guitarras, porque era coisa de menino.

Fischer diz que é preciso agir agora para mudar a realidade das próximas gerações. “Você quase não vê uma menina ganhando uma bateria, como você não vê um menino ganhando um jogo de panela. Ela pode ser uma ótima baterista, e ele um grande chef de cozinha. Por que não?”, questiona a artista.

A pesquisa ainda mostra que a mulher trabalha mais para provar o seu valor e precisa acumular a sua profissão com tarefas domésticas. Das entrevistas, 60% sentem que essa dupla jornada é uma das maiores dificuldades da profissão.

“Elas têm a sensação de que precisam fazer o trabalho melhor do que o homem para conseguir ser reconhecida e para se sustentar”, lembra Ribas. As mulheres com filhos, ainda, disseram que poderiam, pelo seu conhecimento, estar em uma posição mais avançada na carreira.

E não são só advogadas, executivas ou médicas que deixam de ter filhos por suas carreiras. Na área musical, isso também acontece. A pesquisa mostra que 62% das mulheres que conseguem ser atuantes na música são solteiras e não têm filhos.

“A impressão é de que esse mercado pode ser mais liberal, mas não é verdade. As mulheres acabam tendo menos tempo para saídas culturais. Depois de serem mães, elas vão menos ao cinema, a exposições. Elas têm até mais interesse, mas não conseguem ir”, diz Ribas.

SEMENTE DA AUTOCONFIANÇA 

Organizações, institutos e coletivos têm crescido e impulsionado a comunicação entre essas mulheres e, assim, engrossar o gênero. Para as entrevistadas, só com grandes mulheres no mercado é que novos nomes vão ganhar força para surgir.

"As meninas hoje não têm referências fortes de mulheres. Essas artistas existem, são bateristas, são cantoras, são produtoras, mas pouca gente sabe. A mulher também precisa fazer a sua parte e ter confiança de que é capaz de fazer um bom trabalho", diz a instrumentista Delia Fischer.

Mahmundi também reforça essa ideia e afirma que ainda se crê na visão de que tal gênero deveria executar certo tipo de trabalho, deixando as questões mais técnicas, por exemplo, sempre na mãos dos homens.

"O processo tem que vir do começo, lá da formação, das escolas de produção musical que não têm mulheres, nem como alunas e muito menos como professoras. Precisamos ressignificar os lugares, porque não adianta chamar mulheres para trabalhar se elas não tiveram antes a chance de ter experiência, de serem inseridas no mercado", diz a cantora.

Em Sorocaba, no interior de São Paulo, o Girls Camp Rock Brasil é um exemplo de transformação. Aberto a meninas de 7 a 17 anos, o instituto cultural incentiva a produção autoral de música e estimula a autoconfiança das crianças e adolescentes. Não é preciso ter prévio conhecimento musical para participar.

"Em uma semana, elas escolhem um instrumento, montam uma banda, compõe e se preparam para a apresentação. A sociedade impõe que é preciso saber muito para começar a fazer algo e mostramos que isso não é verdade, trabalhando a autoconfiança das meninas", diz Saltara.

 

A autoconfiança é tudo na visão da DJ Sarah Stenzel, 32. No seu próximo evento, o AME Laroc Festival, ela é a segunda mulher confirmada de uma lista de 45 DJs, mas ela vê o tema com otimismo. "Esses números são reflexo de um tempo mais difícil para a mulher. Claro que ainda existe machismo, mas conseguimos atingir um bom patamar. O mercado musical tem mulher, tem travesti, já ganhamos uma batalha."

"Tento não usar a palavra preconceito. O importante é focar no seu trabalho, no que você acredita e sair fazendo. Confiança é algo muito importante nesse processo", completa.

No Girls Camp Rock Brasil, as meninas ainda fazem seus cartazes, camisetas, divulgam o seu show, criam seu fanzine. A programação geral tem aulas de defesa pessoal, de cultura afro-brasileira, de comunicação nã-violenta, de histórias das mulheres na música. "Falamos de feminismo de forma lúdica", pontua Saltara.

O espaço está com uma campanha no Catarse para se manter em funcionamento. O projeto é aberto para todos que não se identificarem com a classificação homem cis. O Girls Camp Rock Brasil nasceu nos Estados Unidos e se disseminou pelo mundo. "Fomos as primeiras na América do Sul, mas hoje já tem em Porto Alegre e outros países vizinhos", afirma a musicista.

Nos Estados Unidos, há outro exemplo. A organização Sound Girls se empenha em formar mais mulheres para o mercado musical. Segundo a Karrie Keyes, diretora executiva da organização, elas fornecem recursos na formação musical, em diversas disciplinas e também ensinam como lidar com o assédio moral e sexual.

Ela afirma que a indústria musical é tão misógina quanto qualquer outra, por isso, ainda há luta. “Aos poucos, isso está mudando porque há muito apoio hoje às mulheres que trabalham na área."

ESTÍMULO QUE VEM DO STREAMING

A dificuldade de encontrar talentos femininos na música fez com que o Spotify criasse o projeto Escuta as Mina, que envolve mulheres do começo ao fim da cadeia de criação da música. Compositoras e cantoras, como Souto MC, Bibi Caetano e a banda The Mönic tiveram músicas gravadas e produzidas por outras mulheres.

Cada uma delas vê com importância iniciativas como essas. "Como banda de rock, a gente já foi desrespeitada por técnicos de som do lugar. Eles acham que a gente não vai saber se tem algo errado, trocam fios de lugar, sempre tem aquela risadinha de fundo”, diz Dani Buarque, guitarrista da banda The Mönic.

A plataforma tem estudado o papel das mulheres na música desde 2017, ao criar playlists e projetos especiais com mulheres, tanto os novos talentos, como Karol Conka, Elza Soares, Mart’nália, As Bahias e a Cozinha Mineira, Tiê, e Lan Lanh, além de Chiquinha Gonzaga (1847-1935), Maysa (1936-1977) e Cassia Eller (1962-2001).

Na sequência, a plataforma criou a Casa de Música Escuta as Minas, em São Paulo, um espaço de compartilhamento de ideias exclusivo às mulheres. Para Roberta Pate, diretora de relacionamento com artistas e gravadoras do Spotify na América Latina, não adianta só investir em formação, é preciso criar conexões entre essas mulheres.

"Nessa casa, foram gravados 24 singles por mulheres diferentes no ano passado. A casa reuniu desde produtoras de áudio até engenheiras de som, desde cantoras até multi-instrumentistas a facilitadoras de workshops", diz a executiva.

Pate afirma que a iniciativa do Spotify não acontece só no Brasil. Há o Equalizer, na Suécia, e SoundUp Bootcamp, que acontece nos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. O Spotify ainda cita o projeto She Is the Music, ONG americana que trabalha para aumentar o número de compositoras, engenheiras, produtoras e artistas da indústria profissional da música.

"Na campanha #SITM12, empresas influentes fornecem recursos para apoiar três pilares da organização: campos de imersão de composição feminina, mentoria e um banco de dados global de criativos femininos”, afirma Pate.


Apresentações de bandas criadas no Girls Camp Rock Brasil

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