Música

A política por trás do ritmo calipso

De origem caribenha, tradição musical é uma das mais políticas

O calipso tem origem na região caribenha e está entre as tradições musicais mais políticas do mundo - BBC News Brasil
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Descrição de chapéu BBC News Brasil

Fora do Caribe, a música calipso é vista como um ritmo despreocupado, leve ou até mesmo fútil. No Brasil, o Estado do Pará exportou para o resto do País uma variação do estilo com influências locais como a lambada, o carimbó e a guitarrada.

Mas o calipso originalmente vem do Caribe e está entre as tradições musicais mais políticas do mundo - um estilo que combina cadências alegres com letras sérias sobre temas sociais. Originado na luta por emancipação, o gênero é caracterizado pela maneira sagaz e criativa com que tratou temas como racismo, Guerra Fria e o alto custo de vida.

Erros de julgamento comuns sobre o ritmo estão ligados, em parte, ao sucesso comercial do álbum Calypso, do músico americano Harry Belafonte, que vendeu mais de um milhão de cópias quando foi lançado, em 1956.

A música mais famosa, Banana Boat (Day-O), não é um calipso de verdade e o álbum é uma celebração da Jamaica, ainda que o calipso tenha origem em outra região caribenha, em Trinidad.

DISPUTA PELAS ORIGENS

Em uma competição cultural em 1993, o grande mestre do calipso Chalkdust se apresentou com a música Misconceptions ("Equívocos", em tradução livre) para questionar as "imagens falsas" da ilha ("nós não somos parte da Jamaica / Apesar de cantarmos reggae, essa não é nossa cultura") e sua música ("Então, quando você ouvir Belafonte e Mr. Poindexter / Isso não é kaiso [calipso], e sim brandy misturado com água").

No Brasil, a música é associada à banda Calypso, liderada pela dupla Joelma e Chimbinha, que ficou nacionalmente famosa nos anos 2000 e que mistura calipso com ritmos paraenses em um estilo que foi chamado de "brega pop".

Mas o ritmo original do calipso tem tradições criadas por escravos do oeste da África que foram levados ao Caribe. A música kaiso (a escrita original da palavra) era tocada por um griot, o indivíduo que tinha o compromisso de preservar e transmitir histórias de seu povo com críticas sociais por meio do louvor, da sátira ou do lamento.

Suas letras muitas vezes faziam piada com os senhores de escravos e eram recitadas na festa da colheita de Canboulay, que acontecia em paralelo com o carnaval, do qual até mesmo os escravos libertos eram barrados.

Em 1881, as autoridades coloniais britânicas baniram instrumentos de percussão do Caribe, o que resultou na inovação da música com panelas de ferro, inicialmente consistindo de frigideiras, tampas de latas de lixo e baterias de latas de óleo.

Inicialmente, o ritmo calipso era tocado no formato pergunta-resposta em locais como tendas. Os "calipsonianos" entretinham e desafiavam seu público - uma estratégia adotada pelos melhores expoentes da forma moderna da música, como O Maestro. Sua performance de 1974 de Mr. Trinidad fala "Você critica a forma como você vive / Mas você não consegue criar uma alternativa".

RIMAS E DECLAMAÇÕES

Com as primeiras gravações comerciais acontecendo nos anos 1920 e 1930, o calipso entrou em uma era de ouro. O estilo virou uma forma de comunicação e interpretação de acontecimentos políticos e uma forma primária de acessar notícias por muitos habitantes das ilhas.

O conteúdo de cada música era debatido entre cidadãos e políticos, com tópicos que incluíam má administração colonial (o assunto da música Commissioner's Report, "Relatório do Comissário", de Attila), violações de liberdades civis (Sedition Law, "Lei de Sedição", de King Radio) e corrupção (Money is King, "Dinheiro é Rei", de Growling Tiger) - o que eventualmente levou à censura dos músicos.

Attila até escreveu uma música sobre, The Banning of Records, "O Banimento dos Discos" - a música, por sua vez, também foi banida.

Ainda assim, suas críticas tinham nuances e o relacionamento com as autoridades nem sempre era hostil. As músicas Five Year Plan ("Plano de Cinco Anos"), Here Now and Long Ago ("Aqui, Agora e Há Muito Tempo") celebram o desenvolvimento rápido de Trinidad e alguns até elogiam administradores coloniais (We Mourn the Loss of Sir Murchison Fletcher, "Estamos de Luto por Sir Murchison Fletcher", de Lord Executor), enquanto alguns eram favoráveis à monarquia.

As primeiras músicas vencedoras da competição Monarca do Calipso, criada em 1939, reforçam o foco político, como Trade Union ("Sindicato), Rise and Fall of the British Empire ("Ascensão e Queda do Império Britânico"), Adolf Hitler, Daily Mail Report ("Relatório do Daily Mail").

O desemprego causado pela Grande Depressão americana inspirou Attila a compor a poderosa música Worker's Appeal ("Apelo dos Trabalhadores") e Executor a compor I Don't Know How the Young Men Are Living ("Eu Não Sei Como os Homens Jovens Estão Vivendo").

Desde que Trinidad se tornou independente, em 1962, os calipsonianos se afiliaram a partidos políticos e seus líderes, principalmente Eric Williams, o "pai da nação" que liderou a ilha após a independência por 19 anos até sua morte.

Apelidado de Williams, O Conquistador no calipso de Mighty Sparrow, a sombra de William continua a se sobrepor sobre a política de Trinidad, como é lamentado na música I Can't Bury Eric Williams ("Eu Não Consigo Enterrar Eric Williams"), de Chalkdust.

As músicas calipso também oferecem soluções para problemas sociais, desde a música How to Stop Delinquency ("Como Parar com a Delinquência") de Mighty Leveller até Build More Trade Schools ("Construam Mais Escolas Técnicas") sobre a importância da educação vocacional.

Mighty Sparrow, o segundo maior vencedor do Monarca Calipso (atrás apenas de Chalkdust) escreveu sobre temas como transporte público e educação infantil.

Sparrow também tratou do alto custo de vida com calipsos como No, Doctor, No ("Não, Doutor, Não"), direcionado a Williams, e até cantou mais de uma vez em defesa de impostos, com PAYE e You Can't Get Away from the Tax ("Você Nem Sempre Pode se Livrar da Taxa").

A crítica social de Sparrow o colocou em conflito com outros calipsonianos e também com políticos: "se você disser a eles que a economia não está mais crescendo / Então você se torna um profeta da sentença e do florescimento".

OLHANDO PARA FORA

Alguns dos mais famosos calipsos falam sobre a segregação racial nos EUA, como Crisis in Arkansas ("Crise no Arkansas") de Lord Invader e Heading North ("Rumo ao Norte) de Mighty Terror sobre a segregação racial nos Estados do sul. As hipocrisias das democracias ocidentais foram criticadas por Lord Cristo.

Calipsos dos anos 1960 refletem uma conscientização racial crescente, como expressado na letra Black is Beautiful ("O Preto é Lindo"), de Mighty Duke. "Não ao ferro para alisar nosso cabelo / Não ao alvejante para nos deixar mais brancos / Com orgulho eu digo sem remorso / Não ao complexo de inferioridade."

Esse tema foi articulado por Lord Kitchener em Black or White ("Preto ou Branco") - "Você não pode escapar do fato / De que se você não é branco, é considerado negro" - música na qual ele critica uma mulher de raça mista por se passar por branca.

A consciência negra se estendeu além de Trinidad, especialmente no trabalho de Black Stalin, que cantou as músicas Caribbean Unity ("Unidade Caribenha") e United Africa ("África Unida").

A solidariedade com o continente ancestral é evidente na música Rhodesia Crisis ("Crise da Rodésia") e a mítica Uhuru-Haranbee de Lord Brynner. Esse olhar internacional também se voltou à Guerra Fria, com calipsos como Lift the Iron Curtain ("Levante a Cortina de Ferro") de Lord Ivanhoe e Russian Satellite ("Satélite Russo") de Sparrow.

MULHERES CHEGAM AOS HOLOFOTES

Até o surgimento de Calypso Rose em meados dos anos 1960, a visibilidade maior no gênero foi dominada por homens, apesar de uma longa tradição de mulheres cantoras.

O sucesso de Calypso Rose nos anos 1970 chegou ao ápice quando ela se tornou a primeira mulher a ganhar o Monarca Calipso. A segunda, Singing Sandra, foi uma das comentadoras políticas mais astutas, com suas críticas a pobreza (Voices from the Ghetto ou "Vozes do Gueto"), exploração sexual (Die With My Dignity ou "Morra com a Minha Dignidade") e militarismo (The War Goes On ou "A Guerra Continua").

Denyse Plummer se tornou a terceira mulher a vencer o prêmio com seu calipso Nah Leaving ("Não Vou Sair"), uma rejeição à emigração.

Os calipsonianos que ficaram em Trinidad conseguiram influenciar sua cultura política. Em 1986, o partido Movimento Nacional do Povo (PNM na sigla em inglês) perdeu uma eleição pela primeira vez em 30 anos para a Aliança Nacional para Reconstrução (NAR na sigla em inglês).

Os partidos trocaram farpas em forma de calipsos entre si: O NAR escolheu a música The Sinking Ship ("O Navio Naufragando"), de Gypsy, com o refrão pegajoso Vote Dem Out ("Vote eles para fora"). Com essa vitória, Gypsy lançou a música Respect the Calypsonian ("Respeite o Calipsoniano") em que ele avisa: "Eu posso escrever uma música para fortalecer o governo / Eu posso escrever uma música para derrubar o governo / Eu escrevo as músicas das causas do homem pobre / Eu que escrevo as músicas que rodeiam as leis / Da escravidão à emancipação, eu dei minha contribuição."

O papel do calipsoniano, nas palavras de Black Stalin, é o de "Guardião do povo / Eleito pela vida". De fato, o artista aclamado como O Calipsoniano do Povo, Bro Valentino, cantava: "O calipsoniano é a única verdadeira oposição".

Em Leader of the Opposition ("Líder da Oposição"), o cantor Watchman faz piadas de calipsonianos como Sugar Aloes, que continua apoiando campanhas eleitorais: "Agora que o PNM venceu / Aloes não tem nada para cantar / Ele não pode morder a mão que o alimenta".

Assim como Atilla entrou na carreira política com sucesso nos anos 1940, o próprio Watchman se tornou um chefe de polícia e sua crítica social no calipso perdeu um pouco o fôlego.

Em 1945, Andrews Sister fez um hit com sua versão light de Rum e Coca-Cola, de Lord Invader, tirando da versão original a crítica à prostituição perto de uma base naval americana em Trinidad.

As cadências animadas do calipso sempre tendiam a ser mal interpretadas (alguns diriam até que mal apropriadas) e há quem diga que o carnaval na diáspora perdeu sua consciência social. Ainda assim, em Trinidad, a tradição política continua hoje - um raro exemplo de uma forma de arte realmente democrática.

BBC News Brasil
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