Factoides

HUMOR: Democracia boca-suja

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Levante a mão quem já ouviu falar do Mose Allison. Nenhuma mão erguida: imaginei. É um pianista e cantor americano de jazz (bons discos, vale ouvir), mas o que interessa pra este texto é que ele compôs uma música que diz "your mind is on vacation and your mouth is working overtime" (seu cérebro está de férias e a boca está fazendo hora extra). Basta trocar "boca" por "dedos", que a frase explica a POROROCA de besteiras escritas sobre o episódio "Dilma xingada no Itaquerão".

Por exemplo: colunista detona a Copa, critica os gastos do governo com ela, chama o pessoal da Fifa de mafioso (com boa dose de razão, é claro). Aí a torcida vai lá e xinga exatamente a entidade mafiosa e a representante do governo responsável pelos gastos: "opa, aí não!" (certamente, faltou um sommelier de protesto pra dar à massa a justa medida). Se está todo mundo escrevendo bobagem, também quero contribuir, ora essa. E começo listando as coisas que o episódio me ensinou:

  • A má educação da torcida na abertura da Copa foi inusitada e inédita. Todos nós sabemos que torcedor de futebol é aquele sujeito que, quando o juiz erra, deixa cair o pincenê, tira o chapéu de palhinha e exclama: "Com a breca! Certamente esse árbitro se equivocou!". Não xinga o juiz, os jogadores e as mães de todos eles das maiores barbaridades imagináveis, não é machista, nem (nos piores casos) racista ou homofóbico, não se mata nos estádios e fora deles. Ao contrário: milhares de pessoas no Brasil vão aos estádios, toda semana, com uma versão de bolso do manual de etiqueta do Marcelino de Carvalho.
Crédito: Danilo Verpa/Folhapress Joseph Blatter, da Fifa, e Dilma recebendo todo o carinho e a finesse da torcida brasileira
Joseph Blatter, da Fifa, e Dilma recebendo todo o carinho e a finesse da torcida brasileira


  • Só tinha "elite branca paulistana" no jogo de abertura da Copa (eu mesmo tuitei sobre a "ausência de negros" no público –estava difícil achar um pela Grobo). De todo modo, caberia perguntar o que aconteceu com os ingressos que o governo prometeu destinar aos índios e a quem recebe Bolsa Família, assim como aos operários que participaram da construção dos estádios. Se eles não estavam no Itaquerão, a pergunta é outra: como Dilma e seu governo torraram milhões em dinheiro público (desenhando: de todo o povo) num evento tão excludente que só permite o acesso dessa elite aos jogos?

  • "Elite branca paulistana" é um conceito bem elástico: nele cabe todo mundo que não gosta/não vota no partido do governo. Pode ser pobre, pode ser negro, pode ter nascido a milhares de quilômetros de SP. Pode até ser índio, operário ou receber Bolsa Família: não importa. Não deixa de ser uma "mobilidade social" como nunca antes neste país (e o salário, ó).

  • Povo é bom, povo é santo, povo não faz uma grosseria dessas com a presidente –se faz, é da elite. Não posso imaginar uma visão das classes mais pobres que seja mais ridiculamente distorcida, desumanizando-as na exata medida em que as santifica. Isso é coisa de quem nunca foi pobre ou nunca sequer esbarrou em um. Ou seja, típico de elite branca culpada.

  • Presidente não é uma pessoa que o país elege para um cargo, a ser ocupado por quatro ou oito anos: é O PAÍS. Quem odeia o ocupante do cargo odeia o país, mesmo que tenha cantado o hino "a cappella" e passado o restante do jogo incentivando a seleção (em especial o Marcelo, depois do gol contra). Dá nó na cabecinha dos colunistas se a torcida for boa e má ao mesmo tempo, não pode.

Só pra deixar bastante claro: é óbvio que o que aconteceu com a Dilma foi desrespeitoso, e eu não endossaria de jeito nenhum. Mas tem muita gente indignada por aí que não só aplaudiria o coro terminado em "u" como se juntaria a ele se o alvo do xingamento fosse o Alckmin –ou o Collor, de nada saudosa memória. Respeito só vale pra quem a gente não odeia?

Enfim, depois do Mose Allison, tem mais alguém que eu gostaria de apresentar: democracia, muito prazer. Vocês não estão acostumados (é compreensível: passaram muito tempo sem), mas a democracia tem desses efeitos colaterais muito, às vezes extremamente, desagradáveis. Xingar os governantes sem por isso ser preso, torturado –como a presidente foi pelos militares no início dos anos 70– ou até fuzilado é exatamente uma das coisas que indicam se você está numa democracia ou numa ditadura. Que eu prefira uma democracia mais bem-educada (e prefiro) não muda a certeza de onde acho melhor viver.


RUY GOIABA jura que consegue ir a estádio e torcer sem fazer nenhuma alusão aos orifícios de ninguém. Mas já xingou juiz e jogadores do próprio time. Eles mereceram, podem acreditar.

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