Factoides

HUMOR: O novo 'ame-o ou deixe-o'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Deixo claro logo no começo: sou daqueles que usam a hashtag #vaitercopasim e, nesta quinta-feira (12), pretendo estar com minha camisa retrô da seleção de 1958 torcendo pelo Brasil (sim, sou contra o "gourmet", mas a favor do "retrô"; me deixa). Não ignoro os senões envolvendo a Copa, mas o Antonio Prata já tratou muito bem do assunto neste texto aqui : um eventual fracasso do Mundial deixará todos os problemas do país do mesmíssimo tamanho.

Dito isso, o assunto deste texto é outro. Reconheço que eu mesmo abuso das citações do Nelson Rodrigues —mas seria bom se os teclados começassem a dar choque em quem escreve "complexo de vira-lata" (expressão criada, é bom lembrar, por alguém que, de um lado, apoiou a ditadura militar; de outro, também escreveu que "subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos"). TUDO agora é "complexo de vira-lata" —absolutamente qualquer crítica, mimimi ou objeção, com ou sem fundamento, contra a pátria-minha-tão-pobrinha, esta república federativa cheia de árvores e de gente dizendo bobagem na internet.

A frase virou um "ame-o ou deixe-o reloaded". Você diz que 35 milhões no país não têm saneamento básico? Complexo de vira-lata. Lembra que em dois anos se mata no país o equivalente aos mortos em dez anos de guerra no Iraque? Vira-lata. Faz a piada do "cinco Copas, nenhum Nobel"? Vira-lata sarnento. Suspeita que o pessoal lá na Noruega viva um pouquinho melhor? Então por que você não se muda de vez pra lá, seu vira-lata complexado?

Crédito: Leticia Moreira - 14.mai.2014/Folhapress Enfeites e decorações em lojas da rua 25 de Março
Enfeites e decorações em lojas da rua 25 de Março

Porque não, ora. Porque tão legítimo quanto se mandar do país, ou ficar nele, é o direito de qualquer pessoa continuar aqui reclamando, em vez de deitar eternamente no esplêndido berço da autocomplacência. Certa ou errada, muita gente que foi pra rua em junho do ano passado (e talvez muitos dos que estão indo agora) foi porque quer que as coisas se movam —e é a crítica que move, não o "tá ruim, mas tá bom" do samba do Zeca Pagodinho erigido em atitude mental.

Hoje, porém, até humoristas escrevem colunas dizendo que a gente "tem que reconhecer os avanços do país". OK, mas humor não é assessoria de imprensa de governos: eles já têm gente muito bem paga pra divulgar os tais avanços. Sou do tempo em que era "cool" ser mosca na sopa, desafinar o que Sousândrade chamava "coro dos contentes". Viramos mesmo o país do humor a favor, em que perfis engraçadões de Twitter lambem as botas do poder em vez de dizer coisas desagradáveis na cara, que é a função histórica —e honrada— dos bobos da corte?

Quanto ao patriotismo, a relação de qualquer um com o lugar em que nasceu —ou escolheu viver— não tem nada a ver com hino, bandeira, "pogreço nacionau", muito menos com os governantes de turno. Tem a ver com família, afetos, paisagens que evocam momentos felizes, lugares em que coisas importantes aconteceram e fizeram de nós o que somos. Torcer pela seleção (e eventualmente se emocionar com o hino, como na versão "a cappella" da torcida na final da Copa das Confederações) permite conectar os símbolos do país à própria história emocional e lhes dar significado. É um momento fugaz em que o Brasil faz sentido —e nem o governo nem a CBF são donos disso.

Mas, afinal, ninguém é obrigado a torcer. Cobrar adesão incondicional ao país reflete aquele tipo de patriotismo que é o último (ou o primeiro) refúgio dos canalhas e só merece "não amo nem deixo" como resposta. Somos muitos Zagallos, e o Brasil vai ter que nos engolir. (Quanto a quem vê "complexo de vira-lata" em tudo: favor ir cheirar as meias usadas do general Médici.)


RUY GOIABA foi concebido num 7 de setembro (dizem) e nasceu numa Copa —sugiro jogar "21 de junho de 1970" no Google para saber o que mais aconteceu nesse dia.

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem

Últimas Notícias