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Tony Goes

Glória Maria já era antirracista muito antes de o termo entrar na moda

Ao longo da carreira, jornalista sempre defendeu a igualdade racial e outras causas progressistas

Lázaro Ramos e Glória Maria nas gravações do programa Espelho, exibido em 2013
Lázaro Ramos e Glória Maria nas gravações do programa Espelho, exibido em 2013, no Canal Brasil - Mariana Vianna / Divulgação
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O Brasil está em choque nesta quinta-feira (2), abalado com a morte de Glória Maria. Não faltam matérias na imprensa nem postagens nas redes sociais homenageando a primeira jornalista negra de destaque da TV brasileira, celebrando sua incrível carreira de mais de meio século.

Glória Maria passou por várias fases ao longo desse período. Começou fazendo reportagens de rua em 1971, mas em 1977 já estava em Washington, cobrindo a posse do presidente Jimmy Carter. Foi apresentadora de todos os telejornais da Globo, ancorou o Fantástico por quase uma década e, nos últimos anos, estava no Globo Repórter, onde suas reportagens produzidas em viagens internacionais geraram uma enxurrada de memes deliciosos.

Além do pioneirismo e do rigor profissional, Gloria Maria também tinha outra qualidade evidente: a ausência de papas na língua. O único assunto proibido era sua idade, o que acabou formando um simpático folclore ao seu redor. Mas, quando o assunto era racismo, ela jamais se furtou a enfiar o dedo na ferida e a dizer o que pensava, mesmo quando o Brasil ainda acreditava ser uma "democracia racial".



"A escravidão continua existindo, só mudou de cara. Não somos mais presos por correntes ou grilhões, sim, mas a nossa escravidão é tão cruel que somos vistos como inferiores, subalternos, sub-humanos e, pior ainda, sem poder de decisão", disse ela à jornalista Lu Lacerda, que a entrevistou inúmeras vezes.

"O racismo no Brasil é muito mais grave, muito mais cruel, porque parte da desinformação e do egoísmo. Em outros países, existe, mas, quando acontece, é direto – temos como nos defender; você reconhece o inimigo e fica mais fácil lidar com ele. No nosso país, as pessoas, além de racistas, são covardes", prossegue, na mesma entrevista, publicada originalmente em 2017.

Ao mesmo tempo em que tinha a consciência de ser um exemplo para milhões de pessoas e de sua importância para o movimento negro brasileiro, Glória Maria também ressaltava seus méritos pessoais – o que também não deixa de ser uma atitude antirracista.

"Quando comecei a apresentar o Fantástico, em 1998, muita gente fez movimento, dizendo que foi por pressão do movimento negro, e não pelo meu talento e minha capacidade. Se um branco faz, é porque conquistou; ninguém diz que foi pressão da sociedade branca".

Lu Lacerda ainda a confrontou por só aparecer namorando homens brancos. Glória Maria revidou na hora: "Os homens negros preferem as brancas. O próprio negro se discrimina; para ele acreditar que venceu e tem status, precisa usar os valores brancos, como as suas mulheres, por exemplo. Quanto mais escura a sua pele, mais excluído você é" .

A luta contra o racismo não era a única bandeira de Glória Maria. Em outra entrevista a Lu, em 2014, a jornalista defendia: "Que cada um faça aquilo que considera importante, seja o que for: namorar, casar, viajar, trabalhar, transar homem com homem, transar mulher como mulher Concretize o que você ache ser dar um passo – viver e deixar viver".

"Ando chocada com a caretice do mundo. Vivi os anos 1970 e 1980, quando ninguém era de ninguém, todo mundo podia tudo. Fico louca quando leio nos sites, por exemplo, que alguém usou uma saia curta (...). Por que não?".

Nesta mesma conversa, Glória Maria se dizia contrária ao politicamente correto, e soltou uma frase que, embora engraçada, talvez causasse uma certa polêmica nos dias de hoje. "Parar de querer entender as mulheres: basta conviver bem. Pra que entender? Não há Freud que consiga".

Assim era ela: espirituosa, libertária, eternamente otimista, ao mesmo tempo em que fazia questão de lembrar os terríveis episódios de racismo de que foi vítima a vida inteira. A coragem, o bom humor (que incluía a inestimável capacidade de rir de si mesma) e a seriedade de Glória Maria vão fazer muita falta.

(Para quem já está com saudades: a TV Cultura reprisa nesta quinta (2), às 23h, o "Roda Viva" que teve Gloria Maria como entrevista, exibido originalmente em março de 2022. A colunista Cristina Padiglione, do F5, faz parte da bancada. E o Canal Brasil reprisa nesta madrugada, à 0h30, o episódio do talk show "Espelho" em que Lázaro Ramos conversa com Gloria Maria, gravado em 2013.)

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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