Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Tony Goes

Cássia Kis e Regina Duarte esqueceram-se de que homofobia é crime

Defensoras de Bolsonaro, ambas vêm atacando os LGBT+ nas redes sociais

Cassia Kis nos bastidores da peça "Meu Quintal É Maior que o Mundo" - Zanone Fraissat - 31.jan.19/Folhapress
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

São duas atrizes de talento indiscutível, que construíram carreiras sólidas ao longo de muitas décadas. Encarnaram dezenas de personagens icônicas, das vilãs mais cruéis a mulheres do povo cheias de empatia. Agora, quando poderiam estar colhendo os louros de tantas glórias, ambas se tornaram bufonas da extrema direita, jogando suas reputações no lixo e resvalando para o crime.

Regina Duarte é bolsonarista de primeira hora. Visitou o então candidato à presidência da República enquanto ele se convalescia da facada que levou durante a campanha de 2018, e passou a apoiá-lo incondicionalmente depois de eleito. Tanta fidelidade lhe rendeu um convite para assumir a Secretaria Especial da Cultura –uma versão reduzida o antigo Ministério da Cultura, extinto e absorvido pelo Ministério do Turismo.

Regina precisou romper um contrato de quatro décadas com a Globo para aceitar o cargo público. Tomou posse cheia de boas intenções e uma certa dose de ingenuidade. Imediatamente, passou a ser bombardeada pelos colegas de pasta, pois não seria suficientemente olavista em sua visão do mundo. Dois meses depois, foi exonerada. Como prêmio de consolação, Bolsonaro lhe prometeu o comando da combalida Cinemateca Brasileira, o que jamais cumpriu.


Mesmo humilhada pelo presidente, Regina Duarte encarnou com gosto o papel de animadora de sua torcida. Ávida por aplausos que não recebe mais por seus papéis, que foram ficando escassos nos últimos anos, Regina descobriu que eles viriam se começasse a expelir barbaridades ao gosto dos bolsominions. Ganhou seguidores no Instagram, e também muitas críticas –que parecem só insuflar nela a vontade de falar bobagem e espalhar fake news.

Uma semana atrás, Regina compartilhou um vídeo gravado por seu colega e correligionário Carlos Vereza em que o ator descasca a escalação do ator Billy Porter como uma fada-madrinha não-binária no filme "Cinderela", que a Amazon Prime Video lançou um ano atrás. Regina assina embaixo: "Socorro, pais e mães. Tios e tias, avós, parentes em geral, amigos de verdade da infância brasileira: Cinderela da Disney ameaça valores de nossas crianças!"

Nem Vereza nem Regina perceberam que essa nova "Cinderela" não foi produzida pela Disney –uma empresa, aliás, que também vem incluindo personagens LGBT+ em seus conteúdos. Mas chocante mesmo é ver dois atores, que há mais de meio século estão inseridos num meio muito frequentado por gays e afins, de repente se voltaram contra seus próprios companheiros.

Ainda mais estarrecedoras foram as declarações de Cássia Kis durante uma entrevista a Leda Nagle. A atriz, como se sabe, se metamorfoseou subitamente em católica fervorosa e ardente defensora de Bolsonaro, a quem ela tecia duras críticas pouco mais de um ano atrás. Cássia virou uma espécie de pregadora, infernizando seus colegas na Globo. E o que disse a Leda Nagle foi tão grave que gerou até uma nota da própria emissora, onde se lê que "a Globo tem um firme compromisso com a diversidade e a inclusão, e repudia qualquer forma de discriminação."

"Não existe mais o homem e a mulher, mas a mulher com mulher e homem com homem. Essa ideologia de gênero que já está nas escolas (…) quer destruir a família", afirmou a atroz. "O que é que está por trás disso? Destruir a família, sem dúvida nenhuma. Mas destruir a família só? Não. Destruir a vida humana. Porque, que eu saiba, homem com homem não dá filho, mulher com mulher também não dá filho. Então, como é que a gente vai fazer?"

Não seria má ideia a população mundial se reduzir em alguns bilhõezinhos, dando folga a um planeta que se aproxima da exaustão. Só que não faltam crianças geradas por casais heterossexuais abandonadas por aí, e que muitos LGBT+, casados ou solteiros, gostariam de adotar. Mas radicais como Cássia preferem que essas crianças mofem em orfanatos ou morram na rua.

As reações a tamanho descalabro já começaram. A atriz Lúcia Veríssimo publicou uma foto beijando Cássia Kis, e garantiu que não se tratava de um "beijo técnico", de cena. "Chega de hipocrisia!", exclamou Lúcia na postagem.

Filha de Daniela Mercury e Malu Verçosa, a pós-graduanda em direito Márcia Verçosa de Sá Mercury acionou o Ministério Público do Rio de Janeiro contra Cássia Kis, acusando a atriz de homofobia –hoje em dia, um crime equiparável ao racismo no Brasil.

Tanto Regina Duarte como Cássia Kis parecem ter se esquecido deste pequeno detalhe. Sim, homofobia é crime: dá multa e dá cadeia. As duas agora vão se dizer perseguidas, ignorando que milhões de gays, lésbicas, trans e afins são perseguidos, discriminados, agredidos e até mortos neste Brasil reacionário de 2022.

O mais espantoso é que ambas conviveram com pessoas LGBT+ a vida toda. Alguns dos melhores personagens que fizeram na TV foram escritos por autores assumidamente gays, como Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Walcyr Carrasco.

Cássia é uma pessoa psicologicamente instável, que vem sofrendo remorso por um aborto que fez há muitos anos e se deixou enveredar pelo Centro Dom Bosco, uma organização católica extremista para quem até o Papa Francisco é um perigoso subversivo.

Regina é um poço de vaidade. Quer aplausos, venham de onde vierem. Como agora eles só vêm da extrema direita, é para esta plateia que prega a volta da ditadura que ela dedica seus puns de palhaço.

Não custa lembrar que os três personagens que causaram a grande virada na carreira de Regina —a prostituta da peça "Réveillon", de Flávio Márcio, e as icônicas Malu, da série "Malu Mulher", e Viúva Porcina, da novela "Roque Santeiro"— tiveram problemas com a censura do regime militar . Sem elas, Regina teria tido sua carreira encerrada quando não convencesse mais como Namoradinha do Brasil.

Como homem gay, me sinto pessoalmente atingido por essas duas atrizes que eu tanto admirava. Elas não me consideram um cidadão pleno, com os mesmos direitos e deveres que todo mundo. Eu, em contrapartida, não gastarei mais meu tempo nem meu rico dinheirinho assistindo a qualquer obra de que elas participem. Também tenho limites, também tenho valores.

Mensagem do Instagram que aparece nos perfis de Regina Duarte e Carla Cecato - Instagram

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem