Tony Goes
Descrição de chapéu Maratona

'Lindinhas' é contra a erotização das crianças, mas a direita histérica não quer nem saber

Filme da Netflix vem sendo atacado nas redes sociais por gente que não o viu

Cena do filme "Lindinhas" - Netflix
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Neste domingo (13), um dos assuntos mais comentados do Twitter no Brasil foi o filme “Lindinhas”, disponível na Netflix desde a quarta passada (9). Usando hashtags como #pedoflix e #CancelNetflix, internautas de direita clamavam por um boicote à plataforma, acusada de promover a pornografia infantil através do longa de estreia da diretora francesa Maïmouna Doucouré.

A campanha não se restringe ao Brasil. Já vem rolando há algumas semanas nos Estados Unidos, desde que a Netflix divulgou seu próprio cartaz para “Lindinhas”, com quatro garotas em trajes sumários fazendo poses provocantes – bastante diferente do original, que mostra as mesmas meninas correndo pela rua com sacolas de compras nas mãos. O serviço ainda publicou uma descrição equivocada da trama, que seria sobre uma garota que “começa a explorar sua própria feminilidade, desafiando as tradições de sua família”.

Logo surgiu uma petição online exigindo que o gigante do streaming removesse “Lindinhas” de seu catálogo antes mesmo da estreia. Quase 600 mil pessoas já aderiram a este abaixo-assinado. Como costuma acontecer nesses casos, pouquíssima gente viu o filme antes de investir contra ele.

A histeria coletiva foi tão longe que Paul Joseph Watson, um agitador de extrema direita, escreveu um artigo acusando “Lindinhas” de fazer propaganda subliminar para o comunismo. A prova? Um cartaz com a foice e o martelo, que aparece discretamente ao fundo de uma cena externa.

A Netflix percebeu o desastre de marketing que ela mesma provocou e correu para minimizar o prejuízo. Maïmouna Doucouré recebeu ameaças de morte, e Ted Sarandos, co-diretor executivo da plataforma, ligou pessoalmente para pedir desculpas à cineasta. Um vídeo em que ela explica por que rodou o filme foi disponibilizado no YouTube. No Brasil, “Lindinhas” agora aparece no serviço com seu título original, “Mignonnes”.

A suprema ironia é que “Lindinhas” é contra a erotização precoce das meninas. A mensagem do filme é claríssima para quem o viu. Tudo o que a protagonista Amy (Fathia Youssouf, uma atriz prodigiosa) quer é escapar do destino da mãe, uma imigrante do Senegal que se vê obrigada a engolir a segunda esposa do marido. Amy acha que o antídoto para a opressão de sua tradicional família muçulmana é se juntar ao grupo de garotas mais “cool” de seu colégio, que formam um grupo de dança inspirado nas coreografias das divas pop.

Amy logo descobre que a sensualidade pode ser uma moeda de troca. Numa das cenas mais angustiantes do longa, ela não hesita em deslizar a blusa dos ombros quando seu primo mais velho a flagra com o celular dele (a garota também é cleptomaníaca, um jeito clássico de gente carente chamar atenção).

Quem estiver de muita má vontade vai se escandalizar com as poucas cenas em que as lindinhas dançam de shortinho (há milhões de vídeos caseiros no YouTube e no TikTok muitíssimo piores). Só que a diretora Maïmouna Doucouré não explora o corpo de suas jovens atrizes em momento algum. O que ela quer é denunciar uma sociedade que transforma meninas em objetos sexuais antes mesmo delas se tornarem mulheres.

Doucouré não tem só um lugar de fala, tem todo um mapa: é mulher, negra, filha de imigrantes, de família muçulmana. Ela conhece o universo onde se passa seu filme, e trata os personagens com empatia. Se há um vilão em “Lindinhas”, são as próprias redes sociais, que Amy vislumbra como um caminho para a aceitação e a popularidade.

Essas mesmas redes agora se voltam contra o filme, mesmo sem tê-lo visto. É típico da nossa era: longas são massacrados por causa de um pôster, artigos são condenados por trazerem um título infeliz, personalidades são canceladas por frases tiradas de contexto.

“Lindinhas” deu à extrema direita um pretexto para berrar contra seu inimigo imaginário favorito, uma suposta normalização da pedofilia que estaria sendo promovida pelos grandes veículos de mídia. O curioso é que esses mesmos paladinos ficaram calados quando o presidente da República fez piadas de cunho sexual para uma youtuber de 11 anos de idade, durante uma live na semana passada.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem