A cultura brasileira começou a encaretar muito antes da eleição de Bolsonaro
Classe artística teme o fim dos mecanismos de incentivo e a volta da censura
Nos primeiros anos da década de 1990, a TV brasileira viveu um boom libertário. Apresentadoras de programas infantis usavam figurinos dignos de chacretes. Carla Perez dançava na boquinha da garrafa em horário vespertino, e a criançada a imitava.
Cláudia Raia mergulhou nua no mar, na novela “A Rainha da Sucata” (Globo, 1990). E uma modelo exibia os seios na abertura de “Mulheres de Areia” (1993), atração global da faixa das 18h.
Em 2011, ao reprisar a novela no “Vale a Pena Ver de Novo”, a emissora removeu qualquer vestígio de nudez dessa abertura. Não queria chocar o público. Ainda estávamos no primeiro ano do governo Dilma Rousseff, mas já era nítido o recrudescimento do conservadorismo da população.
As raízes desse fenômeno vêm de muito longe. Podem ser identificadas até na popularidade crescente da música sertaneja, ao mesmo tempo em que o axé baiano e o funk carioca explodiam em sucesso.
O sertanejo acabou se impondo aos outros ritmos, e hoje é de longe o gênero mais executado do Brasil. As letras costumam ser simplórias, na temática de imitar a fala coloquial. Abundam as rimas pobres e inexistem as metáforas – ou mesmo a sombra de mensagens políticas.
É a trilha sonora perfeita de um país que elegeu um capitão reformado, de modos grosseiros e sem papas na língua, como o próximo presidente. Não é coincidência que muitos dos grandes astros do sertanejo tenham declarado apoio explícito a Jair Bolsonaro.
Nos últimos anos, fomentada pela expansão das igrejas neopentecostais, a censura voltou a dar as caras – mesmo proibida pela Constituição de 1988, ainda em vigor. Exposições de arte viraram alvos de protestos, por vezes violentos. Peças de teatro foram impedidas de se apresentar em espaços públicos. Artistas e jornalistas passaram a ser perseguidos nas redes sociais. Alguns chegaram a receber ameaças de morte.
Nada disso é exclusivo do Brasil. Muito já se falou da onda de direita que vem percorrendo quase o mundo inteiro, como resposta à crise econômica e às diferentes ameaças (imigração, violência, etc.) percebidas por diferentes povos.
A eleição de Bolsonaro é culminação da versão brasileira desse movimento. Para 2019, depois da posse do novo presidente, artistas e agentes culturais temem um acirramento no conservadorismo – para não dizer caretice – que boa parte dos brasileiros já exala.
A Lei Rouanet foi demonizada por gente que nem sabe como ela funciona, e até artistas estrangeiros que nunca vieram ao Brasil são acusados de “mamar nas tetas do estado”. Bolsonaro agora diz que não pretende acabar com a legislação atual, só aperfeiçoar sua aplicação. Veremos.
Lideranças evangélicas já anunciaram com todas as letras que querem aprovar algum tipo de “controle social” da cultura. Talvez nem precisem: a autocensura já começou.
Fernanda Torres afirmou, em sua mais recente coluna na Folha, que, devido ao clima vigente, cancelou uma temporada na Zona Norte do Rio de Janeiro de sua peça “A Casa dos Budas Ditosos”, que ela encena há 15 anos. Não questiono as razões da atriz para tanto, mas torço para que este seja um caso isolado.
De qualquer forma, o futuro presidente não é a causa desse “encaretamento” generalizado: é apenas um sintoma. Resta torcer para que, assim como cresceu, essa tendência obscurantista também diminua.
Talvez já esteja diminuindo. Um sinal é o próprio sertanejo, que vem se modernizando. Depois anos sendo acusado de oferecer uma visão branca, masculina e heteronormativa do mundo, o gênero se renovou graças ao surgimento do chamado “feminejo”: cantoras como Marília Mendonça, Maiara & Maraísa, Simone & Simaria e muitas outras, que trouxeram novos pontos de vista e algum frescor. Já é alguma coisa.
Comentários
Ver todos os comentários