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Krishna Mahon
Descrição de chapéu Sexo feminicídio

Com a fé na humanidade abalada

Homens, melhorem

Imagem da série 'Feminicídio', da artista Panmela Castro - Instagram/@panmelacastro
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Não sei se é de tanto ouvir Gilberto Gil cantar "Andar com Fé" desde a infância, mas tenho fé demais. Fé num mundo melhor, fé na humanidade, fé na vida. Sou quase Poliana. Lembra daquele livro em que a personagem era um poço de esperança? Sexo é a desculpa pra essa coluna e pro SexPrivé Club (programa que apresento todos os sábados na Band), mas sou movida pela fé de que podemos encontrar caminhos para o afeto, para nos conectarmos melhor e sermos mais felizes. Pois essa fé, que parecia inabalável, deu uma titubeada essa semana.

As notícias mostravam mais um caso de estupro, dessa vez dentro da faculdade. Há algumas semanas era o de uma criança de 10 anos pelo próprio tio. A violência contra mulher só cresce. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil contabilizou, ao todo, 66.020 estupros em 2021. Mais de 35 mil são de crianças de até 13 anos. E as mulheres pretas, como sempre, estão no topo das piores estatísticas. A violência sexual é o tipo de violência mais subnotificada no mundo e as estimativas são de até 10 vezes mais casos do que os registrados. Mas como registrar se parte de nós não tem provas e nem amparo legal, e, ainda, corremos o risco de sofrermos processo por calúnia e difamação?

Um nó se forma na minha garganta.


Enquanto torço pela educação sexual nas escolas, porque a criança não está segura nem na sua própria casa, ao menos quatro meninas, menores de 13 anos, são estupradas por hora. O pedófilo é na sua maioria pai, padrasto, tio, primo ou avô. Educar as crianças é combater a pedofilia. 73% dos brasileiros são a favor da educação sexual nas escolas. Torço para que os outros 27% não apoiem por conta de pura ignorância, e não para seguir abusando. Minha fé ainda existe, mas brilha menos.

100 de 100 mulheres vão torcer para cruzar com outra mulher quando estão andando sozinhas à noite. "Ah, nem todo homem é estuprador"; não, mas todos os estupradores são homens. Homens cisgênero, claro, porque o homem trans vem com um chip evolutivo de fábrica.

O estupro acontece em qualquer idade e onde menos se espera. Na faculdade, na festa da firma, na igreja, no culto, ou mesmo quando estamos com aquele amigo que conhecemos há anos, que conhece nossa família toda. Outras notícias recentes mostram que nem na hora do parto nós estamos a salvo de sermos estupradas. "Ah, mas isso é um fato isolado". Quem dera. Só no estado do Rio de Janeiro, uma mulher é estuprada cada duas semanas em hospitais. Em 2019, o site The Intercept fez um levantamento inédito que mostrava 1.734 casos de violência sexual cometidos em instituições de saúde de nove estados brasileiros. Reparei, talvez por ter a Odara (nome que minha amiga pediu para ser utilizado ao invés do dela) na minha vida, que a mulher que foi vítima era preta. Nem um pio sobre isso nos meus grupos ou nas notícias que li.

Tem gente que cresce no coração da gente, né? Meu peito é uma casa da mãe Joana; ao menor sinal de afeto eu boto pra dentro. Sem contar com o meu coração, a Odara, minha amiga querida, não entrou fácil em lugar nenhum, mesmo vindo de uma família com grana. Ela é linda de rosto e de corpo, de cima a baixo, por dentro e por fora, é inteligente, legal, tem humor ácido e, para minha sorte, ela me dá várias voadoras que me fazem crescer horrores. Bom quando a gente tem amigo que dá os pescotapas que precisamos, né? Que as deusas nos livrem do povo que vê a gente fazendo ou falando merda e que, apesar disso, não diz nada.

Você é tipo a Odara ou faz vista grossa pro amigo que força a barra com a menina na balada, que finge que não vê a mulher cambaleando sendo arrastada pro carro? Quando ouve o amigo contando que fez isso ou aquilo com a menina que estava louca, você ri ou condena? Quando uma amiga te conta sobre o abuso sofrido, você escuta, mas diz que toda história tem lados diferentes e que pode não ser bem assim? Você passa pano pra estuprador, pra quem pratica violência contra mulher? Tem que ter um bocado de fé na humanidade e, também, fé no processo evolutivo dos amigos para de fato apontar erros. É fácil se calar e fingir que não é com você, né?

Em julho do ano passado, uma idosa de 99 anos morreu algumas horas depois de ser estuprada. Esse ano já apareceram outros casos de estupro de idosas, inclusive numa casa geriátrica. Tem até no necrotério. Ou seja, nem quando nasce, nem quando está dando nascimento a outro ser, nem no fim da vida, nem mesmo quando morre a mulher está a salvo. E sempre, sempre, seu algoz é um homem.

Cresci sem sentir aquela rede de segurança que os pais em geral representam para os filhos, mas tenho a sorte de viver isso no casamento. É gostoso ter em casa alguém com quem contar. Tenho as irmãs, algumas amigas, mas o ambiente de casa me gerou um tipo de potência que não conhecia. Essa sensação crescente de ser amada, de segurança e amparo, certamente funcionam como mola propulsora para que eu voe cada dia mais alto. Odara apanhou do marido quando ainda era casada e os filhos eram pequenos. Violência de quem a gente ama. Como pode? Penso que muitas das nossas amigas relativizam a violência sofrida por ela, e minha fé na humanidade diminui.

Lembrei de 2011, quando Preta Gil perguntou como Bolsonaro reagiria se seus filhos se relacionassem com uma mulher preta, e a resposta foi que não corria esse risco, porque os filhos tinham sido bem-educados. "Ah, mas o Lula e o Ciro já deram declarações racistas e misóginas." Não duvido; que todos paguem pelos seus erros.

Bolsonaro, em 2014, teve aquela fala sobre a deputada Maria do Rosário, de que ela não merecia ser estuprada porque era feia. Em 2017, falou sobre a "fraquejada" que resultou na sua única filha. Em 2019, já eleito presidente, Bolsonaro fez uma crítica aos direitos trabalhistas, alegando que a "maternidade afeta o patrão". No mesmo ano, afirmou que o Brasil não poderia ser um país de turismo gay, mas que "quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade". Esse ano Bolsonaro foi condenado a pagar R$ 20 mil à jornalista Patrícia Campos Mello, também da Folha, por dizer que ela queria "dar o furo". Penso que parte da população se sente representada nessa misoginia, racismo e homofobia, e minha fé agoniza.

A vasta maioria dos seguidores do meu Instagram são homens, e, como falta fé, principalmente no homem hétero, fico sem postar nenhum story em muitos dias. Será que a Phoda Madrinha vai embora pra nunca mais voltar? Ligo a TV e "Em Casa com os Gil", da Amazon Prime, funciona como cola pra esse coração partido pela dureza da realidade. Uma luzinha acende aqui no peito ouvindo "Andar com Fé".

Krishna Mahon

Jornalista e cineasta indicada ao Emmy, é apresentadora do SexPrivé Club da Band. Foi produtora da Discovery e diretora de conteúdo do History.

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