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Cenas da série "The Wire", da HBO Divulgação

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Jonathan Abrams
The New York Times

David Simon admite que você precisa ser um tipo bem específico de [ele emprega um termo chulo] para se divertir ao dizer "eu não disse?". "Mas não consigo resistir, OK?", ele declarou recentemente. "Ninguém gosta do sujeito que vive repetindo ‘eu não disse?’, mas foi muito orgânico. Ed, eu e os demais escritores, quando foram contratados, todos nós tínhamos visto as mesmas coisas acontecerem em Baltimore".

Duas décadas atrás, Simon, que foi repórter policial do jornal The Baltimore Sun, se uniu a Ed Burns, um detetive de homicídios aposentado da polícia de Baltimore e ex-professor do ensino público, a fim de criar a série "A Escuta", para a HBO. Fictícia mas inspirada pela Baltimore em que Simon e Burns viveram, a série, que estreou em 2 de junho de 2002, introduziu uma legião de personagens inesquecíveis, como o pistoleiro incorruptível Omar Little (interpretado por Michael K. Williams, que morreu em 2021), e Stringer Bell (Iris Elba), um traficante com aspirações mais elevadas.

Eles eram peças insubstituíveis de uma série policial que tinha um propósito maior: fazer uma crítica devastadora à guerra contra as drogas, e uma dissecação mais ampla do colapso institucional de uma cidade, e que expandiu seu escopo ao longo de cinco temporadas para lidar com o declínio da classe trabalhadora, do sistema de educação pública e de outros pilares da vida cívica dos Estados Unidos.

Não estamos falando de histórias feitas para se tornarem sucesso na TV. Na época, o programa conquistou uma audiência pequena mas dedicada, e teve de batalhar para evitar o cancelamento. Mas ao longo dos anos, "A Escuta" passou a ser elogiada como uma das maiores séries da história da televisão, e a decadência sistêmica que ela retratava se tornou ainda mais pronunciada, aos olhos de seus criadores.

Burns e Simon continuaram a colaborar em outros projetos ambiciosos para a HBO, mais recentemente em "We Own This City", minissérie criada por Simon e pelo escritor George Pelecanos, um dos roteiristas de "A Escuta", e baseada na história real da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas, uma unidade corrupta da polícia da Baltimore.

Em entrevistas separadas, Burns e Simon discutiram o legado de "A Escuta" –Burns por telefone de sua casa em Vermont e Simon em pessoa, na sede da HBO em Manhatan– e explicaram por que ela não poderia ser feita da mesma maneira hoje. Também falaram sobre o que inspirou a série e sobre o efeito devastador das políticas adotadas pelos Estados Unidos com relação às drogas. Abaixo, trechos editados das duas conversas.

Vocês imaginaram que "A Escuta" se provaria tão duradoura, duas décadas depois de sua estreia?
Burns: A primeira coisa que me vem à cabeça é que essa série viverá para sempre, porque tenta retratar alguma coisa que existirá para sempre. E que está ficando cada vez pior, pior e pior. É só isso. E está se expandindo; deixou de ser só uma coisa urbana. Está em toda parte.

Simon: Ed e eu em Baltimore, George em Washington, Richard Price em Nova York –todos nós vimos mais ou menos a mesma dinâmica. Havia políticas públicas e havia premissas que nós sabíamos que não se comprovariam. Que continuariam a fracassar. E estávamos rapidamente nos transformando em uma cultura que nem mesmo é capaz de reconhecer seus problemas, quanto mais resolver qualquer deles. E por isso o que senti foi que devíamos fazer uma série sobre isso.

Eu não antecipei o completo colapso da verdade, a ideia de que você pode simplesmente mentir descaradamente para chegar ao poder. Não antecipei o colapso político do país em termos de (Donald) Trump. O prefeito (fictício de Baltimore na série, Tommy Carcetti,) é um político profissional. Donald Trump é sui generis. É difícil até fazer ideia de a que ponto a cultura política do país se deteriorou, a esta altura, por causa de Trump.

A série parece ter prenunciado o colapso da verdade, com a história do serial killer fabricado, na temporada final, e da aceitação da mídia quanto a ela.
Simon: Nós queríamos muito criticar a cultura de mídia que permitia que tudo que aconteceu nas quatro temporadas anteriores acontecesse sem nunca mencionar qualquer dos problemas sistêmicos. Era algo de que queríamos falar, mas não antecipamos que a mídia social tornaria irrelevantes os erros de cálculo da grande mídia. Agora nem mesmo é necessário responder a uma imprensa profissional, ainda que desatenta. Basta fomentar alguma coisa em um ambiente não regulado, no qual as mentiras viajam tanto mais rápido quanto mais ultrajantes forem. Se a verdade deixou de ser um indicador, não há como um país se governar corretamente.

Burns: Se você olhar no mapa, metade da região centro-oeste e do oeste dos Estados Unidos estão contaminadas, e nós tratamos a questão como costumávamos tratar um cadáver deixado na esquina, ou a visão de um cara algemado em algum lugar. É como uma má notícia, ou um acidente de carro: "Olha, um tornado destruiu aquela cidade inteira". E fica nisso.

Não existe energia. Sempre pensei em tentar fazer uma história na qual o governo cria um algoritmo para identificar fagulhas, figuras como Malcolm X e Martin Luther King, homens assim, quando eles ainda são jovens, para ou aliciá-los e comprometê-los ou puni-los antes que se tornem aquilo que serão. Porque precisamos de fagulhas. Precisamos de indivíduos que se ergam e resistam, e unam as pessoas em torno deles, e não é algo que tenhamos –as fagulhas, a raiva intensa a ponto de se sustentar autonomamente.

É um legado conflitante que "A Escuta" tenha conquistado uma audiência maior ao longo dos anos, mas a decadência institucional que a série ilumina tenha aparentemente se agravado?
Burns: Recentemente, o governo Biden e a prefeitura de Nova York anunciaram que queriam aumentar o número de policiais nas ruas. Eu me divirto ao ver que aquilo que eles estão fazendo é a verdadeira definição de insanidade: você tenta algo, e não funciona. Você tenta de novo, e não funciona de novo. É hora de tentar alguma coisa diferente. Mas eles continuam a fazer a mesa coisa.

É claro que a campanha por cortar as verbas da polícia não é a maneira certa de apresentar o argumento. Mas transferir o dinheiro da polícia para pessoas que poderiam lidar com alguns aspectos da situação seria bom. E depois fazer alguma coisa ainda mais dramática, como por exemplo criar um propulsor de crescimento econômico, que não as drogas, para ajudar as pessoas a se erguerem e a fazerem alguma coisa com suas vidas.

Como é que "We Own This City?" deve ser encarado, em comparação a "A Escuta"?
Simon: É uma narrativa separada. Nós levamos muito a sério a ideia de tratar de carreiras policiais reais, atividades reais e um escândalo real que aconteceu. Ou seja, não é uma história conectada ao universo de "A Escuta", nesse sentido. Mas é um epílogo para a questão da guerra contra as drogas que tentamos criticar em "A Escuta". Se a série tinha uma mensagem política –e não quero dizer tema, mas sim um argumento bruto de política pública— era com certeza de que precisávamos parar com a guerra contra as drogas. E se "We Own This City" tem uma mensagem fundamental, é "ACABEM. COM. A. GUERRA. CONTRA. AS. DROGAS". Em maiúsculas e com ponto final depois de cada palavra. É simplesmente um epílogo enfático sobre o ponto a que sempre estivemos nos encaminhando, caso não mudemos a missão do policiamento nos Estados Unidos.

O objetivo de "We Own This City" era oferecer uma crítica mais aguda à polícia do que "A Escuta"?
Simon: Não. Não acredito que haja muita diferença entre as duas situações, a não ser na profundidade da corrupção dos maus policiais. O trabalho policial é uma empreitada tão necessária e tão plausível quanto sempre foi.

Em muitos casos, e em muitos lugares como Baltimore, o índice de solução de crimes vem caindo profundamente nos últimos 30 ou 40 anos. Isso não é acidente. É porque gerações de policiais foram treinados para lutar na guerra contra as drogas. Não é preciso competência alguma para ir a uma esquina, mandar todo mundo se encostar na parede, revistar bolsos e encontrar pequenas porções de drogas, e decidir enfiar todo mundo no camburão. Não é um conjunto de capacitações que ajude a resolver um homicídio.

Isso não significa que eu esteja dizendo que o policiamento era ótimo no passado. Não, compreendo que sempre existiram problemas com relação ao policiamento. Mas somos uma das cidades mais violentas dos Estados Unidos. E todo o discurso sobre abolir a polícia ou acabar com a verba da polícia –eu ficaria feliz se as verbas da guerra contra as drogas fossem canceladas. Ficaria feliz se visse uma mudança de missão, mas não quero que a verba da polícia seja cancelada. Bom trabalho policial é necessário, ou minha cidade se torna inviável. Já vi casos policiais trabalhados de maneira certa e já vi casos policiais trabalhados de maneira errada, e a diferença importa.

Burns: Eu lamento que (Baltimore) tenha sido definida como "a cidade de ‘A Escuta’", porque a série poderia se passar em qualquer outra cidade, exatamente do mesmo jeito. Akron, Ohio, se tornaria "a cidade de ‘A Escuta’", nesse caso. De certa forma é uma pena que essa imagem tenha ficado associada a uma pequena cidade.

Seria possível aprovar "A Escuta" se vocês propusessem a série hoje?
Burns: Com certeza não. A HBO estava em ascensão, na época. Só foram compreender "A Escuta" na quarta temporada. Na verdade, estavam pensando em cancelar a série, no final da temporada três. Nós aproveitamos aquele momento em que as redes estavam pensando que "precisamos de um programa para tal grupo de pessoas".

Mas agora você precisa de algo como "Game of Thrones". O projeto precisa ser grande. Precisa estar desvinculado da possibilidade de pisar nos calos de qualquer um. Assisti a um par de minisséries da HBO, e são bons programas, mas não estão desbravando novos caminhos. São casos de mistério, ou mulheres ricas discutindo sem parar em uma cidade qualquer. Não vejo pessoa dizer que "ei, essa série é excelente".

Simon: Não, porque nós não nos preocupamos de maneira alguma com a ideia de ter uma equipe de roteiristas diversa. Tentei contratar Dave Mills, que era meu amigo desde a universidade, para trabalhar em "A Escuta". Mas isso teria sido orgânico. Ele era meu amigo, e só; nada a ver com ser negro ou branco. Mas, fora David, que escreveu um par de roteiros para nós, e a teatróloga Kia Corthron, que escreveu um, nós éramos muito descuidados quanto à diversidade. Não antecipamos essa necessidade.

Por que não antecipamos? Porque aquilo que eu tinha coberto como repórter e aquilo que Ed tinha policiado era muito orgânico. E aí comecei a contratar romancistas. O primeiro que chamei foi George Pelecanos, cujos livros sobre Washington falavam das mesmas coisas que eu estava cobrindo. E eu por acaso li um dos livros dele e pensei que "esse cara provavelmente seria capaz de escrever aquilo que estamos imaginando". E ele mesmo disse que "olha, vocês estão tentando fazer romances. Cada temporada é como um romance. Vocês deveriam contratar romancistas". E por isso trouxemos Price. Se eu tivesse de fazer aquilo de novo, eu pensaria mais na diversidade da equipe de criação, como aprendi a pensar em produções posteriores.

Em retrospecto, há algo mais que vocês gostariam que a série tivesse tratado de forma diferente?
Burns: Eu queria que temporada cinco tivesse tomado outra direção, pelo menos a história sobre a redação do jornal, e que não espoliasse a ideia da investigação. Mas tudo bem. O que tentamos deixar claro é que os garotos que vimos (na temporada quatro) estavam se tornando, ao chegar perto da idade adulta, os mesmos caras que tínhamos visto nas temporadas um, dois e três. Há um contínuo. É a próxima geração chegando.

Deixando de lado o fato de que as questões que a série destacou continuam prevalecentes, por que mais vocês acham que "A Escuta" se provou tão durável?
Simon: Nada existe em um vácuo. Eu credito "Oz" por me mostrar que existia uma rede no mercado disposta a contar uma história sombria, uma história adulta. "Homicide" (o primeiro livro de Simon) tinha sido transformado em série de TV. Mas foi "The Corner" (livro de não ficção de Burns e Simon sobre um mercado de drogas em West Baltimore) que me levou a pensar que "os direitos do livro não valem coisa alguma. Ninguém vai querer mostrar isso na TV americana". E então assisti "Oz" e foi naquele momento que comecei a pensar na HBO, e terminei perguntando se eles não gostariam de fazer uma minissérie sobre um bairro saturado de drogas e sobre a guerra contra as drogas.

E há todos os outros lugares de que roubamos alguma coisa. Roubamos de tragédias gregas, a ideia de que as instituições são deuses e que são maiores do que as pessoas. Por isso, obrigado ao curso universitário que me obrigou a ler peças gregas. Obrigado a "Glória Feita de Sangue", um filme sobre o imperativo institucional, um filme de (Stanley) Kubrick –roubei muita coisa de lá. Obrigado a um bando de romancistas, Pelecanos, Price, Dennis (Lehane), que decidiram arriscar a sorte escrevendo televisão. Obviamente, o elenco e a equipe, e todo mundo.

Mas foi uma série que estava pronta para o caminho que a televisão estava tomando, e quanto isso devemos muita coisa à sorte. A ideia de que você pode ligar a TV e assistir a alguma coisa feita 10 anos atrás ou que acaba de ser postada, ou de que vale a pena esperar para ver todos os episódios de uma vez, ou a possibilidade de assistir a quatro horas de uma minissérie em uma noite de insônia, e ter acesso a isso tudo da maneira que você preferir –cara, eu nunca imaginei que isso viria.

Burns: É como um western. Há uma lenda que envolve tudo. Mas a lenda no caso é realidade. Hoje, 20 anos atrás, daqui a 20 anos –é a mesma coisa. E cada geração que surge, cada bando de garotos que chega, descobre a série e injeta vida nova.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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