Alex Garland, de 'Ex-Machina', diz que se sente uma fraude como diretor
Diretor avalia seu trabalho e cogita voltar a ser apenas roteirista
Diretor avalia seu trabalho e cogita voltar a ser apenas roteirista
Alex Garland, 51, sabe que dar ao seu novo filme o título "Men" é um ato provocador. "É interessante ver que uma palavra tão curta e simples pode carregar um peso tão grande em termos de significados subjetivos", ele disse sobre o filme que deve chegar aos cinemas brasileiros no segundo semestre.
Como roteirista e diretor, Garland se interessa por assuntos que exigem, discussão: na complicada parábola robótica "Ex-Machina: Instinto Artificial" (2015) e em "Aniquilação" (2018), drama de ficção científica estrelado por Natalie Portman, ele optou por estruturas audaciosas e secas, posicionadas bem na interseção de tendências culturais conflitantes.
O ardiloso "Men" opera de maneira parecida, e escala Jessie Buckley para o papel de Harper, uma mulher que tem de aprender a aceitar a morte do marido e a lidar com a culpa que ele atribuiu a ela em seus momentos finais.
Harper aluga uma casa de campo no Reino Unido para se isolar e encarar seu trauma, mas os homens da aldeia vizinha (todos os quais interpretados pelo ator Rory Kinnear) se insinuam, a menosprezam e também a espicaçam. Um deles chega a persegui-la sorrateiramente, e aparece nu no jardim de sua casa. Mas a quem Harper pode reclamar quando todos os homens que a cercam –ou todos os homens, ponto– são, no fundo, o mesmo cara?
Conversei com Garland por vídeo neste mês enquanto ele estava dirigindo "Civil War", um filme de ação épico do estúdio A24, estrelado por Kirsten Dunst. Garland é britânico, e parecia cansado. Antes de dirigir "Ex-Machina: Instinto Artificial", ele só tinha trabalhado como roteirista, criando histórias para que outras pessoas dirigissem –entre as quais "Extermínio", "Sunshine – Alerta Solar" e "Dredd". Quanto mais nossa conversa avançava, mais ele parecia questionar se deseja continuar dirigindo.
"Estou cansado de me sentir uma fraude", ele me disse. "Tenho tantos outros motivos para me sentir uma fraude. Não precisava ter acrescentado mais uma razão, estrutural, para me sentir assim por causa do meu trabalho".
Você lê as críticas dos seus filmes?
Às vezes, porque há alguns sites a que eu vou, e neles eu vejo –com uma sensação horrível, desesperadora– que resenharam alguma coisa em que trabalhei, e eu teria de ser um monge para evitar a tentação de ler. Mas em geral tento ficar longe dessas coisas. A primeira coisa que fiz em qualquer tipo de foro público foi escrever um livro, "A Praia". Eu tinha 26 ou 27 anos quando saiu, li todas as resenhas, e percebi que aquilo podia me ferir incrivelmente, e que tudo parecia muito pessoal. Fui recuando aos poucos, porque afinal já faz 25 anos que estou no ramo. Minha sensação é de que estou recuando aos poucos de todo tipo de coisa.
Do que mais você está recuando?
Acho que em parte é função de eu estar envelhecendo. Conheço menos e menos pessoas, meu círculo é cada vez menor, e saio cada vez menos. Tudo está ficando progressivamente mais silencioso e menor, eu diria.
Seus filmes refletem um pouco essa atitude. Os elencos são sempre muito pequenos e as locações, muito circunscritas. Não há muito entulho.
Seria definitivamente correto defini-los assim. Vejo-me interessado em menos e menos coisas, mas mergulho cada vez mais fundo nas coisas em que estou interessado. E além disso na verdade não sou diretor de cinema. Sou um roteirista que dirige por conveniência.
Você não esperava essa carreira como diretor?
Não foi como se eu tivesse alguma aspiração a dirigir. O que aconteceu se relaciona mais à minha ansiedade como escritor: sempre me incomodei demais quando alguma coisa [no filme] me parecia muito errada, ou quando algo que me parecia importante estava ausente. Mas eu tenho pensado que, depois que eu terminar o filme que estou dirigindo no momento, talvez devesse voltar a ser só roteirista. Isso pode se tornar parte da ideia de recuar do mundo –acho que é hora de deixar esse trabalho. Não tenho o temperamento certo para ser diretor de cinema.
Por que você acha isso?
Seria mais honesto, provavelmente, dizer que eu não gosto especialmente desse trabalho. É algo que preciso me forçar a fazer. É uma função incrivelmente sociável, porque você passa o tempo todo com um grande grupo de pessoas –e, em meu caso, eu preciso fingir ser o que não sou, em alguma medida. No fim do dia, você se sente meio fraudulento e exausto.
Porque você precisa se tornar uma espécie de "showman"?
Sim, exatamente. Vejo-me em pé diante de um grupo de figurantes, dizendo coisas como "vejam só, agora o que vai acontecer é isso e aquilo blablá", falando em voz bem alta e tentando encorajar as pessoas, sendo bem intenso. Faz com que eu me sinta intensamente performativo. Sempre que assisto a um talk show, e vejo o apresentador e o convidado envolvidos naquelas conversas espirituosas, eu olho para eles e penso "e se na verdade essas pessoas estiverem se sentindo muito deprimidas, nesse momento?" Há a obrigação de dizer alguma coisa engraçadinha, há a obrigação de demonstrar interesse por alguma coisa que absolutamente não interessa, e por dentro você sente incrivelmente deserto, existencial. Eu sempre estremeço quando penso nisso –quase não consigo assistir a programas de entrevistas, porque essa é uma sensação muito forte para mim. E minha versão de ser o apresentador de um talk show é estar lá em pé no set de filmagem.
Ainda assim, acredito que você desejaria estar no set, para supervisionar a realização física dos mundos e dos temas que você cria.
Oh, sim, mas esse é o limite da vontade que tenho. Existem muitos diretores para os quais o set é o lugar onde eles querem estar, mais do que qualquer outro, e tão logo um filme acaba eles já começam a tramar para voltar àquela situação o mais rápido que puderem. Para mim, não funciona assim.
Vi alguns diretores chegarem à velhice, e era como se eles tivessem de continuar a dirigir para continuarem vivos. Às vezes, eles já estão começando a lidar com um novo filme antes de terminarem a filmagem do anterior.
Sem dúvida. Bastou você dizer isso e apareceu uma lista de nomes em minha cabeça, e pensei comigo mesmo que "é dessa e daquela pessoa que ele está falando". Mas também existe um outro tipo de diretor que de repente para, pessoas como Peter Weir e Alan Parker. Eles talvez estivessem procurando se afastar de alguma coisa, ou pode ser que tenham só se cansado.
Esse é o intervalo mais curto que você já teve entre o trabalho em dois sets de filmagem? Você filmou "Men" na metade do ano passado e começou a rodar "Civil War" não muito depois.
Sim. O último dia da pós-produção de "Men" aconteceu 48 horas antes do começo da fotografia principal de "Civil War". Literalmente, do sábado para a segunda-feira.
Lembro-me de que conversei com Kirsten Dunst depois que ela foi convidada para "Civil War", e ela disse que estava entusiasmada porque enfim ia interpretar "o papel do menino" em um filme.
Espero que ela esteja feliz com o processo, mas nunca se sabe. Não acredito que seja só eu que acha o trabalho difícil. Sets de filmagem são lugares estranhos. São espaços calvinistas, punitivos, de abstinência. As pessoas trabalham muito, muito, trabalham literalmente até cair de exaustão –e você percebe isso no rosto de todo mundo, ao final do dia. Pode ser que haja elementos de vício, nisso, mas a sensação é a de que tenho um despertador tocando o tempo todo em minha cabeça para me dizer que "você precisa parar de fazer isso".
"Men" foi um filme tão difícil assim de fazer?
"Men" foi realmente difícil. O tema da história incomoda, e é preciso viver com ele, mas também foi um trabalho difícil no plano técnico. A filmagem foi muito curta, e estávamos tentando fazer muita coisa muito rápido. Eu me preocupava com Rory, frequentemente, porque nas semanas finais da filmagem, lá estava ele, nu no meio da madrugada, em um frio de rachar. Parte enorme do processo de fazer um filme é a logística, e é como um trabalho executivo –como executar tais e tais coisas dentro de um prazo de x horas. Literalmente: como executar tanta coisa?
É o tipo de filme que levará as pessoas a discutir sobre sua intenção, e sobre o que a história está tentando dizer. Você me disse uma vez que, no caso de "Ex-Machina: Instinto Artificial", queria que pelo menos 50% do filme ficasse sujeito à interpretação do espectador.
Com o passar dos anos, eu venho conscientemente colocando mais e mais coisas nas mãos dos espectadores. Provavelmente existe um outro elemento nisso, se devo ser honesto, que é o de tornar o espectador meu cúmplice. Essa é outra razão para que eu me afaste, porque há uma parte de mim que é realmente subversiva e agressiva e que gosta de zoar com as pessoas. Às vezes, no caso de "Men", sinto que fui tão longe nessa direção que esbarrei na delinquência.
Que reações o filme despertou até agora?
Tenho bons amigos a quem realmente respeito e a quem mostrei "Men", e a interpretação convicta deles –"sei o que esse filme quer dizer, e quer dizer isso"– é 180 graus diferente daquilo que imaginei que seria.
Quando isso acontece, a sensação é a de uma experiência bem-sucedida?
Não.
Não?
Não. Só parece inevitável. Quando as pessoas assistem a um filme, têm uma resposta que, em nível racional, sabemos ser subjetiva, mas que tratamos como objetiva, e é assim que funciona. Desconfio demais das minhas reações e das reações de outras pessoas –elas podem variar de dia para dia. Por isso, quando ofereço alguma coisa, não tenho expectativa de que todos vão concordar quanto àquilo. Minha expectativa maior é de que as pessoas discordem entre elas, e vejo essa discordância como reflexo primariamente do que essas pessoas são.
O que seus amigos disseram sobre o filme?
"Quem é o protagonista?" E, "esse filme é sobre o que o homem pensa ou sobre o que a mulher pensa?" Mas são as certezas das pessoas que eu acho mais estranhas: "Isso significa tal coisa, aquilo significa tal outra coisa". Já eu me vejo cada menos seguro sobre absolutamente tudo.
Mesmo sobre seu trabalho?
Oh, não tenho certeza alguma a esse respeito. Tudo não passa de um monte de compulsões.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci
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