'A Idade Dourada' explora elite negra do século 19 geralmente esquecida
Equipe e elenco trabalharam para fazer retratação digna e precisa
Equipe e elenco trabalharam para fazer retratação digna e precisa
ATENÇÃO: Esse texto contém spoilers da primeira temporada de "A Idade Dourada"
No quarto episódio de "A Idade Dourada", drama de época da HBO que se passa na Nova York do final do século 19, a jovem aspirante Marian Brook (Louisa Jacobson) faz uma visita não anunciada à casa de sua nova amiga, Peggy Scott (Denée Benton) em Brooklyn, na esperança de surpreendê-la com um quase presente: uma sacola cheia de sapatos usados.
Mas Marian, que é branca, é quem termina surpreendida. Ela descobre que a família Scott, que é negra, tem dinheiro e um nível educacional elevado. Os pais de Peggy, o farmacêutico Arthur (John Douglas Thompson), e a pianista Dorothy (Audra McDonald), vivem em uma casa grande e opulenta, têm empregados doméstico e com certeza não precisam de sapatos velhos.
A existência de uma população negra de elite na cidade, nesse período, homens e mulheres negros que tinham carreiras, dinheiro e influência, é uma realidade factual, ainda que a cultura popular não esteja habituada a explorá-la.
Como disse Erica Armstrong Dunbar, consultora histórica da série, "o que a pessoa média sabe sobre a elite negra de Nova York na década de 1880? A resposta é: quase nada, se é que sabe alguma coisa".
Ao observar a maneira pela qual o cinema e a televisão costumam tratar essa era da história negra, ela acrescentou, "temos uma grande lacuna entre a guerra civil e a era da escravidão e, mais tarde, talvez, o período da Renascença do Harlem [nas décadas de 1920 e 1930] –como se nada tivesse acontecido entre essas duas épocas".
Para as pessoas que produzem e atuam em "A Idade Dourada", a família Scott representava uma oportunidade de dramatizar esse capítulo desconsiderado –de transcender estereótipos duradouros e dar aos personagens negros vidas interiores e um mundo interno tão rico quanto os de suas contrapartes brancas. (Brooklyn, onde os Scott vivem, era uma cidade separada na década de 1880 e se tornou parte da cidade de Nova York em 1898.)
Embora essas intenções estivessem presentes desde o começo da série, elas se tornaram especialmente urgentes durante o lockdown imposto pela pandemia, iniciado em março de 2020, e em meio aos protestos e reflexão nacionais sobre justiça racial que surgiram nos meses seguintes –acontecimentos que tiveram impacto sobre a série tanto por trás quanto na frente das câmeras.
Julian Fellowes, o criador de "A Idade Dourada", afirmou em um email que "parecia desonesto criar uma série que se passa em 1882" –menos de duas décadas depois da abolição da escravatura nos Estados Unidos– "e não termos personagens que tivessem sido afetados por aquilo diretamente".
Fellowes, que no passado criou o drama de época britânico "Downton Abbey", disse que incluir personagens como a família Scott na série da HBO "também nos permitia mostrar alguns dos desafios que os negros americanos, mesmo os afluentes e bem-sucedidos, enfrentavam, na Nova York daquela época".
Dunbar, professora da cátedra Charles and Mary Beard de história na Universidade Rutgers e autora de livros como "She Came to Slay: The Life and Times of Harriet Tubman", começou a trabalhar como consultora em "A Idade Dourada" no mês de agosto de 2019.
Os nova-iorquinos negros daquela era "vão para Brooklyn por estarem fugindo de perseguições", ela disse. "Eles estão fugindo dos tumultos causados pelo alistamento militar obrigatório em 1863. Buscam um lugar onde construir suas casas, seus negócios, criar uma vida o mais livre que pudessem da humilhação e violência".
No primeiro episódio de "A Idade Dourada", Peggy faz amizade com Marian e a acompanha à casa de sua aristocrática tia Agnes van Rhijn (Christine Baranski), em Manhattan. Fellowes disse que o personagem Peggy veio de pesquisas históricas que ele fez sobre a época e de livros como "Black Gotham: A Family History of African Americans in Nineteenth-Century New York City", de Carla Peterson.
Benton, que foi selecionada para o elenco de "A Idade Dourada" no final de 2019, esteve entre os primeiros atores escolhidos para a série, depois de estrelar musicais da Broadway como "Hamilton" e "Natasha, Pierre & the Great Comet of 1812". "Se você está em busca de uma mulher negra em um drama de época, acho que sou eu, agora", disse Benton. "E isso não me incomoda nem um pouco".
McDonald, seis vezes ganhadora do Tony, foi contratada semanas depois de Benton e disse que, ao descobrir que a colega de teatro estava no elenco de "A Idade Dourada", ficou feliz, mas também preocupada com a possibilidade de que a série estivesse apenas preenchendo uma cota.
"Quando soube que Denée estava no elenco, fiquei pensando que ela seria a única pessoa negra em um espaço todo branco", disse McDonald. "Vejo Denée como uma grande luz e um grande talento, e minha esperança era que lhe dessem muito para fazer. Mas nem em um milhão de anos imaginei que haveria mais de nós na série".
Benton disse que também teve reservas sobre a maneira pela qual sua personagem seria apresentada. "O coração e a intenção de Peggy sempre estiveram lá", ela disse "mas havia algumas nuanças na maneira pela qual sua história transcorria" que a incomodavam, e ela expressou essas apreensões aos produtores de "A Idade Dourada" e à HBO.
"O que me empolgou e me levou a advogar por mudanças maiores era o que já existia lá", disse Benton. Uma preocupação inicial derivava de um quebra-cabeças relacionado à situação apresentada no primeiro episódio da série. Como é que Peggy conseguiria permissão para ficar com Marian na casa de sua tia?
Uma solução proposta em um rascunho inicial do roteiro era que Peggy fingisse ser a criada de Marian. Mas embora isso talvez fizesse sentido em termos lógicos, Benton disse que a ideia lhe causou desconforto.
"A única pessoa negra que será vista regularmente... será que precisamos fazer dela um clichê?", ela disse. "Será que não estamos cansados de ver mulheres negras interpretando esse papel na televisão?"
Fellowes disse que Peggy "não seria uma criada real, mas mesmo fingir que ela o fosse nos levaria na direção errada". Ele disse que outros produtores haviam expressado objeções parecidas, acrescentando que "as preocupações de Denée foram uma contribuição útil e produtiva a esse debate, mas, depois que essa ressalva foi expressada não me lembro de qualquer pessoa ter discordado".
Benton disse que os produtores foram receptivos quando ela pontuou questões como essa, no final de 2019 e começo de 2020, quando "A Idade Dourada" estava preparando a rodagem de sua primeira temporada. "Fiquei à mercê de as pessoas escolherem me ouvir", ela disse. "E minha reação foi, veja, vocês estão me ouvindo, e é ótimo, mas precisamos ir ainda mais longe".
Em março de 2020, a pandemia forçou a suspensão da produção de "A Idade Dourada" antes que a gravação começasse. Semanas mais tarde, o assassinato de George Floyd pela polícia levou a semanas de protestos sociais nos Estados Unidos e conduziu a um reexame amplo da maneira pela qual as pessoas negras são retratadas no teatro, cinema, televisão e toda a mídia.
Foi um diálogo nacional que também aconteceu dentro de "A Idade Dourada". Em junho de 2020, Benton enviou uma carta à HBO pedindo por novas mudanças na série. Sua solicitação central, disse a atriz, era "a de que agora tínhamos tempo para acrescentar algumas mulheres negras ao sistema nervoso central da equipe de criação".
Benton disse que sentiu que existia uma expectativa de que ela se pronunciasse, naquele momento. "Eu sentia que as pessoas todas estavam ansiosas, esperando para ouvir o que eu tinha a dizer", ela disse. "De certa forma, acho que todas as grandes empresas estavam sentindo o mesmo –‘oh, meu Deus, será que seremos os próximos?’"
(Ela se recusou a exibir a carta que enviou à HBO, para a preparação deste artigo. "Há um mundo em que seria bonito se todos pudessem ler aquela carta e ver o que é possível", ela disse. "Mas quero que o foco seja o fato de que mudanças aconteceram".)
Àquela altura, a HBO e os produtores de "A Idade Dourada" já estavam contratando e promovendo mulheres não brancas para postos importantes na produção da série. Salli Richardson-Whitfield, atriz ("Um Tira Sem-Vergonha") e diretora de TV, em programas como "Queen Sugar", "Black-ish" e "A Roda do Tempo", foi contratada em novembro de 2019 para dirigir dois episódios da série.
Richardson-Whitfield disse ter sido contratada para "A Idade Dourada" porque "eles estavam à procura de uma diretora não branca, já que sabiam que teriam narrativas como essas e queriam garantir que fossem realizadas autenticamente".
Ela se tornou produtora executiva da série em junho de 2020 e dirigiu quatro episódios. Dunbar, a consultora histórica, se tornou produtora consultiva no começo de 2020, e depois foi promovida a coprodutora executiva.
A busca por uma nova roteirista para a equipe de "A Idade Dourada" que começou no início de 2020 identificou Sonja Warfield ("Will & Grace", "The Game"), que estava desenvolvendo outro projeto na HBO. Ela se integrou à equipe de "A Idade Dourada" como roteirista e coprodutora executiva em julho daquele ano, depois que a rede organizou uma reunião entre ela e Fellowes.
"Eu nem tinha certeza de que fosse uma oferta de emprego, no começo", disse Warfield. "Fiz uma reunião com Julian e eles logo me informaram que eu estava contratada. E eu: ‘O quê? Tudo bem. Ótimo’".
Warfield disse não ter sido escolhida para escrever apenas personagens negros, em "A Idade Dourada". Segundo ela, "fui contratada para escrever todos os personagens". Mas disse que pôde trazer detalhes de sua história familiar para a série, como fazer da personagem de McDonald uma pianista, algo inspirado por uma de suas bisavós, que tocava e ensinava piano.
"Eu queria demonstrar que aquelas pessoas eram cultas e educadas", disse Warfield. "Era um elemento estratégico". Dunbar disse que a carta de Benton foi "parte de um esforço maior" para mudar e melhorar "A Idade Dourada".
"Houve uma evolução orgânica que foi estimulada pelo momento que estávamos vivendo", disse Dunbar. "A carta de Denée ajudou. Foi realmente útil ter uma integrante no elenco que nos revelou suas opiniões. Além disso, houve com certeza outras conversas e muito trabalho adicional".
A HBO afirmou em comunicado que a rede e a Universal Television, sua parceira na produção da série, haviam "redobrado os esforços para expandir a equipe de criação da série e incluir mais mulheres negras durante a produção", até junho de 2020. O comunicado acrescentava que a carta de Benton "iluminou muito uma questão crucial".
As gravações de "A Idade Dourada" enfim começaram em setembro de 2020. Quando McDonald foi convidada para o papel de Dorothy, a mãe de Peggy, ela disse que inicialmente hesitou.
"Eu fiquei preocupada com a possibilidade de me escalarem como empregada doméstica", ela disse. Mas depois de ler uma amostra do texto, uma cena que mostrava Dorothy e Peggy discutindo detalhes de sua vida próspera durante um almoço em um restaurante para clientes negros, McDonald disse que "eu imediatamente aprovei. Porque não era o que eu esperava. Era algo que nunca tinha sido retratado".
Fellowes disse que ele sempre tinha tido a intenção de incluir os personagens de Arthur e Dorothy Scott, "a fim de dar contexto familiar a Peggy" e "expandir a sua história".
A equipe de criação ampliada da série criou novos personagens negros, entre os quais o jornalista e editor T. Thomas Fortune, uma figura histórica interpretada por Sullivan Jones. A equipe também resolveu problemas narrativos, como o de colocar Peggy na posição de secretária de Agnes, e ajudou a redesenhar o guarda-roupa de Peggy.
Como explicou Benton, "existe uma diferença real na maneira pela qual eu teria me vestido para interpretar uma criada e na maneira pela qual uma secretária se vestiria –alguém com soberania própria e uma vida interior, e que não estaria amarrada a Marian. Isso realmente influenciou cada aspecto da maneira pela qual minha personagem é retratada".
Thompson, um astro do teatro ("O Mercador de Veneza") e da televisão ("Mare of Easttown"), disse que espera que "A Idade Dourada" continue a inovar ao narrar a história da família Scott e desse período da história negra. (A HBO já anunciou que a série terá uma segunda temporada.)
"Há novos lugares aonde ir –podemos nos estender e aprofundar", ele disse. "Mas também sinto que a mesa foi posta para mostrar essa família, e para que a audiência sinta que ‘uau, eu nem sabia que existia uma categoria de pessoas como essas’".
Richardson-Whitfield, que dirigiu o episódio mais recente da série, disse que ensinar essa história é valioso. Mas também afirmou que era importante que a "A Idade Dourada" mostrasse o lado humano, em cenas como a da desajeitada apresentação de Marian à família Scott.
"Eu me diverti demais com aquela cena, do momento em que Marian desce da carruagem", disse a diretora. "Os olhares das pessoas na rua. Eu queria me divertir com aquilo".
Como no caso de qualquer outro drama de época, disse Richardson-Whitfield, o ponto é "contar uma história e obter grandes desempenhos. E exibir ao máximo aquelas roupas lindas".
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci.
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