Cenas do filme 'Ink Addiction' com direção de Erika Lust Arden/Divulgação

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Mary Katharine Tramontana
Barcelona
The New York Times

Quando Billie Eilish definiu a pornografia como "uma desgraça", em uma entrevista de rádio recente, a afirmação rendeu manchetes. A cantora premiada com o Grammy disse que começou a ver vídeos pornográficos aos 11 anos, para aprender como fazer sexo, e que agora tinha raiva da maneira pela qual a pornografia representa indevidamente as mulheres.

Quando pessoas falam de pornografia, elas muitas vezes estão se referindo, como Eilish, à sua variedade comercial e heterossexual, porque é isso que a maior parte da pornografia disponível gratuitamente online apresenta. Em sites desse tipo, seria perdoável que um espectador chegasse à conclusão de que tudo parece sempre a mesma coisa. Mas a depender da política sexual e da visão do criador do conteúdo, a pornografia pode ser extremamente diferente.

Um exemplo é o trabalho da cineasta sueca Erika Lust, 44. Ela criou uma produtora, a Erika Lust Films, e a transformou em gigante da pornografia de arte ao oferecer produtos distintos dos que a pornografia convencional apresenta. A maioria dos espectadores assiste aos vídeos elegantes e muito bem produzidos de Lust ao assinar os sites de sua empresa, onde ela também distribui vídeos de outros diretores com postura semelhante. Mas filmes de Lust já foram exibidos, além disso, em salas de cinema convencionais em Berlim, Londres, Paris, Los Angeles e Nova York.

"Não existe só um tipo de pornografia", disse Lust em uma entrevista em seu escritório em Barcelona, onde ela vive desde 2000. "As pessoas veem a pornografia como uma entidade monolítica, mas não é o caso". Nos filmes que Lust realiza, ela disse que seu objetivo é que as mulheres do elenco tenham orgasmos reais.

"Quando mulheres assistem pornografia, precisam ver que as mulheres estão sendo estimuladas", ela disse. "Se existe uma cena de sexo com penetração, os espectadores precisam ver a mulher usando suas mãos ou um vibrador, ao mesmo tempo, porque é isso que funciona para a maioria das mulheres".

Lust acrescentou que já conversou com muitas mulheres jovens que lhe disseram que "'há alguma coisa de errado no meu corpo; não consigo chegar a um orgasmo com um homem'. Mas isso só acontece porque elas estão reproduzindo o que aprenderam com a pornografia online".

Na entrevista de rádio de Eilish, ela disse que o dano que a pornografia online lhe causou tinha sido ainda maior: em sua opinião, a pornografia "destruiu" seu cérebro. A filósofa Amia Srinivasan também tratou recentemente do efeito da pornografia sobre a mente, retomando debates feministas das décadas de 1970 e 1980.

Em "The Right to Sex" (2021), coletânea de ensaios de Srinivasan que se tornou best-seller, ela argumenta que "embora o sexo filmado aparentemente abra um mundo de possibilidades sexuais, é frequente que ele sirva para trancar a imaginação sexual, tornando-a fraca, dependente, preguiçosa, codificada. A imaginação sexual é transformada em uma máquina mimética incapaz de gerar as próprias novidades". (Srinivasan não quis falar para este artigo.)

Ainda que em seu livro ela argumente contra a censura de materiais sexualmente explícitos –uma medida que frequentemente prejudica desproporcionalmente as mulheres e as minorias sexuais, ela escreve— a professora da Universidade de Oxford aconselha os jovens a deixarem a pornografia de lado se desejam que suas vidas sexuais sejam "mais alegres, mais iguais, mais livres".

"Talvez então a imaginação sexual possa ser estimulada, mesmo que por um breve momento, a relembrar seu poder perdido", escreve Srinivasan.

No entanto, Lust disse que a capacidade do cinema para excitar a imaginação erótica foi o que primeiro a atraiu para a pornografia. Enquanto estudava ciência política na Universidade de Lund, na Suécia, ela disse ter lido "Hard Core", um livro de Linda Williams considerado como um clássico da crítica de cinema feminista e que argumenta que a pornografia é uma forma de comunicar ideias sobre gênero e sexo.

O pensamento feminista levou Lust a compreender que a pornografia, como muitos outros produtos culturais, era realizada principalmente por homens, para homens, e de uma perspectiva estreita: a do "heterossexual branco de meia-idade", ela disse. Essa visão masculina da sexualidade era "frequentemente misógina, já que as mulheres eram reduzidas a ferramentas a serem usadas para o orgasmo masculino", acrescentou. Boa parte da pornografia comercial é filmada de uma perspectiva masculina que exclui a totalidade do corpo; muitas vezes, a única porção da anatomia masculina vista na tela é o pênis, disse Lust.

Os filmes que ela dirige e produz, por outro lado, mostram mulheres dotadas de agência sexual, que estimulam seus clitóris e cujas expressões faciais comunicam seus estados emocionais e psicológicos. As atrizes de Lust são mulheres normais, com aparência cotidiana, e incluem pessoas de "diferentes sexualidades, cores de pele e formas de corpo", ela disse.

Os filmes dela também têm roteiros bem estabelecidos. A série mais conhecida de Lust, "XConfessions", consiste de retratos filmados das fantasias reais de suas espectadoras. Qualquer pessoa pode "confessar" suas histórias sexuais, reais ou imaginadas, no site da XConfessions, e se Lust gostar da ideia, a transforma em filme. As histórias incluem fantasias clássicas e variantes mais pervertidas, e às vezes são levadas às telas por diretores convidados, como Bruce LaBruce, um cineasta queer canadense que é conhecido pelos seus filmes cult. Um dos filmes da série "XConfessions", "Valentin, Pierre and Catalina", é uma refilmagem do clássico "Jules et Jim" de François Truffaut, um triângulo poliamoroso entre dois homens e uma mulher.

LaBruce, que acaba de dirigir uma paródia pornô em longa-metragem que toma por cenário a indústria da moda, disse em entrevista por telefone que não se surpreendia com a recente retomada das atitudes negativas com relação à pornografia.

"A ideia de que a pornografia é uma forma masculina de controlar as mulheres –isso costumava ser o domínio da direita cristã", ele disse. "Agora, direita e esquerda meio que inverteram suas posições".

Gayle Rubin, antropóloga que estava do lado "pró-sexo" nas guerras do sexo feministas das décadas de 1970 e 1980, combatendo os apelos por censura, disse por telefone que era "fácil tomar a pornografia como alvo", porque historicamente ela sempre foi marginalizada, social e legalmente.

"Sabe aqueles filmes em que você acha que o monstro está morto mas ele sempre retorna?", ela disse. "Essas suposições sobre a pornografia sempre ressurgem, e isso há mais de quatro décadas".

"Muita gente simplesmente não pensa tão rigorosamente sobre a pornografia quanto sobre outros assuntos. A pornografia é um caso especial na forma pela qual é tratada intelectualmente –ou maltratada, no caso—, mesmo entre filósofos e outros que deveriam saber melhor", disse Rubin.

Embora a indústria da pornografia não seja conhecida pela reflexão crítica, há eventos como o Festival de Cinema Pornográfico de Berlim, um encontro anual que busca oferecer novas perspectivas sobre essa modalidade –artísticas, sociais e mesmo filosóficas. Paulita Pappel, atriz e diretora pornô que é uma das curadoras do evento, disse que a pornografia muitas vezes "é um espelho de problemas maiores na sociedade". Ela acrescentou que "quanto mais a tomamos como bode expiatório e estigmatizamos, menos espaço haverá para que a pornografia seja diversa, e menos oportunidade teremos de mudar as grandes questões".

Quando Lust exibiu seu primeiro longa, "The Intern", em uma sala lotada no festival, em outubro, muita gente na plateia –homens, mulheres e pessoas não binárias, em sua maioria na casa dos 20 e 30 anos de idade– disse que estava lá em busca de uma alternativa à pornografia convencional.

"Estou aqui porque uma amiga me recomendou Erika Lust, dizendo que ela não faz pornôs heteronormativos", disse Levent Ekemen, 28, estudante de pós-graduação. "Os filmes dela mostram sensualidade e são extremamente eróticos".

Lust disse que sua esperança era a de que os filmes em seus sites possam ter um efeito "expansivo" sobre o senso de erotismo daqueles que os assistem.

"No caso de alguns dos filmes de LaBruce em que há interações entre homens", ela disse, "já houve homens que me disseram, ‘Erika, nunca assisti algo assim antes, mas estava no seu site, e achei muito sexy’. As pessoas estão abrindo suas visões sexuais, expandindo-as para além daquilo que estavam acostumadas a ver".

Ela acrescentou que desejava ajudar a criar uma sociedade que vê a sexualidade como múltipla e alegre, e na qual o prazer da mulher importa. "O valor que os filmes têm em termos de construir empatia com outras pessoas é incrível", disse Lust. "O sexo é uma parte imensa daquilo que somos, e existem muito mais histórias para contar". "Tenho o direito de contá-las", ela acrescentou. "E ninguém pode me impedir".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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