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Jamie Dornan Charlotte Hadden/The New York Times

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Kyle Buchanan
The New York Times

Jamie Dornan, 39, moveu os dedos pela lareira, rearranjando os restos de cinza que encontrou por lá, como se à procura de alguma atividade simples na qual se concentrar para não ter de pensar sobre uma coisa muito importante que aconteceria no dia seguinte. "Minha esperança é só que não joguem tomates na gente ou peçam que nos guilhotinem", disse o ator.

Era o dia anterior à estreia do novo filme de Dornan. "Belfast" conta a história de um menino que cresce na Irlanda do Norte, e o dia seguinte veria sua primeira exibição na cidade que dá nome à obra, a cidade em que Dornan viveu nos 19 primeiros anos de sua vida. A expectativa era de que 1.500 pessoas comparecessem à estreia, e Dornan antecipava o que o pessoal de sua cidade poderia sentir sobre um filme ambientado lá: curiosidade, possessão, e disposição de atacar caso "Belfast" desse o menor passo em falso.

"Por melhores que sejam as críticas que consigamos no mundo todo, o que realmente queremos é que as pessoas de Belfast gostem do filme", disse Dornan, se remexendo nervosamente em sua poltrona. "Por isso, as coisas serão interessantes amanhã à noite. Meu Deus, vai ser emocionante!"

As boas críticas no resto do planeta não eram uma referência hipotética. Desde sua primeira exibição, no Telluride Film Festival, no final de agosto, "Belfast" recebeu reações tão positivas que muitos especialistas o veem como favorito ao Oscar de melhor filme. Baseado em experiências de infância do diretor e roteirista Kenneth Branagh, o filme acompanha Buddy (Jude Hill), um menino de nove anos, "Pa", seu querido pai (Dornan), e sua mãe ("Ma") muito protetora (Caitriona Balfe), em seu esforço para decidir se permanecerão em Belfast depois que a violência sectária irrompe em seu bairro.

"Belfast" foi filmado em preto e branco, dirigido por um homem cinco vezes indicado ao Oscar e conta com Judi Dench como mãe de Dornan; em outras palavras, fica bem distante da franquia "Cinquenta Tons de Cinza", uma trilogia de sexo muito malhada pela crítica que tornou Dornan famoso e ao mesmo tempo se tornou um fardo para sua reputação. Da última vez que Dornan esteve na cerimônia do Oscar como apresentador, em 2017, a presença dele parecia ser um esforço de reconciliação com a audiência: olha lá, é aquele ator bonitão que aparece frequentemente sem roupa em um "blockbuster" sobre sadomasoquismo que a maioria dos eleitores do Oscar não selecionaria para um prêmio nem por medo do chicote.

E agora, poucos anos mais tarde, pode ser que ele volte à cerimônia como astro de um dos filmes mais queridos dos votantes do prêmio.

Conversei com Dornan no começo de novembro, no Soho Farmhouse, um clube privado na região rural da Inglaterra; ele tinha vindo de carro da área de Cotswolds, bem próxima, onde mora com a mulher, a compositora e instrumentista Amelia Warner, e as três filhas do casal. Dornan costuma interpretar sujeitos sólidos e solenes, embora fora das telas ele borbulhe de humor irlandês e mal consiga parar quieto. Ele também é brincalhão de uma maneira que os filmes que faz ainda não conseguiram mostrar. Quando nos acomodamos diante da lareira e pedimos água, que demorou a chegar, ele brincou que estava pensando em me dar uns beijos "só pelos fluidos".

Os olhos dele são de um azul tão escuro que parecem consistir apenas de pupilas, o que empresta à sua presença na tela um ar sobrenatural que seus papéis mais notáveis aproveitam ao máximo. Em "The Fall", série policial da Netflix, e em "Cinquenta Tons de Cinza", mesmo quando seus lábios se retorcem em um sorriso sarcástico, os olhos ainda guardam segredos; já na recente comédia "Duas Tias Loucas de Férias", os olhos do ator parecem poços escuros, o que é bem adequado para um filme que funciona quase se fosse a versão "live-action" de um desenho animado. "Belfast" explora o olhar etéreo de Dornan ao máximo: quando a família dele está sob ameaça, os olhos de Dornan se arregalam, magoados, e depois endurecem, mostrando agressiva determinação.

"Acho que sua presença na tela é realmente capaz de transmitir o perigo, tanto a preocupação com sua proximidade potencial, mas também sua capacidade pessoal de produzi-lo", escreveu Branagh em um email.

Sempre que o pequeno Buddy olha para seu pai, é somo se estivesse contemplando o sol, e Branagh reforça esse culto ao herói, filmando Dornan em branco e preto como literalmente um galã de cinema do passado que canta "Everlasting Love", na cena central do filme. Embora Pa se baseie no pai de Branagh, Dornan o imbuiu de características de seu pai, um homem que ele adorava da mesma maneira, quando criança.

Dornan me alerta de que, se falarmos sobre seu pai, pode ser que ele chore; isso não acontece, mas é o único momento da conversa em que ele para de se mexer. Jim Dornan era um renomado obstetra e ginecologista, e presidente da Northern Ireland Pancreatic Cancer, uma organização assistencial da Irlanda do Norte, além de ser o maior fã do filho. Ele estava muito ansioso por ver "Belfast" –afinal, seu filho trabalharia com Judi Dench—, mas morreu em março deste ano, de Covid-19. Ele tinha 73 anos.

"Ele era o maior dos homens, muito gentil e maravilhoso, e dava todo o seu tempo, honestidade e respeito a todos a quem conhecia", disse Dornan. "Espero que algumas dessas qualidades tenham ficado em mim, e estou realmente tentando incorporá-las pelo resto da vida. E tentei colocar muitos desses elementos na minha interpretação de Pa, porque era uma bondade que eu era capaz de reconhecer".

Dornan também estava disposto a usar aquilo que aprendeu desde que se tornou pai, coisas que é difícil personificar até que você as experimente em pessoa. Ele recordou que, em um de seus primeiros grandes papéis, o de um assassino serial em "The Fall", o personagem dele tinha de secar o cabelo da filha depois de um banho; Dornan ainda não tinha filhos, naquela época, e passou a toalha na cabeça da menina com tanta força que o produtor da série teve de pedir que parasse.

Ele adora contar histórias em que seu papel é o de alvo da zombaria, um traço que considera como muito característico de Belfast. "Isso está nos nossos genes, encontrar motivos para riso nos momentos mais difíceis", ele disse. E embora a esta altura ele tenha vivido mais tempo fora de Belfast do que viveu na cidade, muitas das características do lugar continuam presentes nele. "Quando uso a palavra ‘lar’", disse Dornan, "continuo a me referir a Belfast".

Ele saiu da cidade logo antes de completar 20 anos, três anos depois que sua mãe morreu de câncer pancreático. Ele tinha passado aquele período se sentindo desorientado e bebendo demais, e sua irmã mais velha, preocupada, decidiu inscrevê-lo para um reality show de modelos, como é costume.

Dornan não ganhou a competição, mas depois de se mudar para Londres ele ascendeu rapidamente entre os modelos masculinos, o que quer dizer que posou com Kate Moss, namorou com Keira Knightley e foi apelidado de "o torso dourado" pelo The New York Times. Antes de uma sessão fotográfica para o jornal em 2006, ele se lembra de ter passado a noite em claro, em uma festa. "Eu gostaria de dizer que amadureci, de lá para cá", disse Dornan, "mas não tenho muita certeza de que o fiz".

Isso não é bem verdade. Metade do motivo para que Dornan tenha prosperado como modelo estava no fato de que ele não ligava muito para o trabalho. Sua despreocupação era o fator X que ajudava a vender até mesmo os mais ridículos trajes ou cenas. Mas para ter sucesso como ator, a pessoa precisa realmente se importar, e precisa encontrar maneiras de continuar a se importar mesmo quando é rejeitada em uma audição, quando perde um papel que parecia perfeito, ou quando se vê sujeitada a ridículo público.

Dornan sempre quis ser ator, mas tinha medo de começar a se importar, e por isso persistiu como modelo até que a carreira começou a incomodá-lo. "Não acho que ficar parado lá para que pessoas o fotografem seja algo interessante o bastante para fazer por décadas", ele disse. "Se isso o satisfaz, e você pode dizer sinceramente a você mesmo que está perfeitamente feliz com o que está fazendo, então ótimo. Mas para mim não era assim. Minha sensação era de que aquilo tudo era péssimo".

Quando ele fez a transição para o trabalho como ator e se autorizou a começar a se importar com a profissão, as coisas se tornaram difíceis. A primeira audição dele foi para o papel de um conde que atrai a atenção de Kirsten Dunst em "Maria Antonieta" (2006), e ele conseguiu o papel imediatamente. Mas ninguém está interessado em ler um perfil sobre um cara bonitão que encontra o sucesso em tudo que tenta fazer, e não foi essa a história de Dornan.

"Tive muita sorte por começar já naquele nível", disse Dornan. "Era aquela sensação estranha –primeiro eles te mostram a cenoura, depois puxam a cenoura para longe, e removem até suas migalhas, e você fica pensando, Jesus, não havia uma cenoura ali um minuto atrás?"

Ele passou muito tempo à procura de um projeto firme, duradouro, mas mesmo quando conseguiu um papel regular em uma série, como um xerife bonitão em "Once Upon a Time", o personagem foi abruptamente assassinado depois de apenas nove episódios. Dornan recorda os colegas de elenco celebrando os empregos garantidos, em uma série que ficaria no ar por sete temporadas, enquanto ele terminou ejetado em apenas três meses, e já estava se sentindo desesperado para provar, a si mesmo e ao mundo, que tinha algum valor.

Foi então que ele conheceu Warner, a quem ele vê como uma figura estabilizadora em sua vida e em sua carreira. E pouco tempo depois de eles se casarem, Dornan conseguiu o papel de um homicida em "The Fall", um trabalho que mudou o jogo para ele, e o colocou sob observação dos executivos de elenco de Hollywood que estavam em busca do homem certo para interpretar um belo sádico.

Dornan recorda o que pensava ao contemplar "Cinquenta Tons de Cinza" do ponto de vista de um observador desinteressado: Hollywood com certeza estava ansiosa por transformar os livros sacanas de E.L. James em uma franquia de cinema, mas ele já naquele momento tinha a impressão de que as pessoas fariam fila para detonar os filmes, quando eles fossem lançados. "E aí um dia você descobre que o cara do filme é você", disse Dornan.

Interpretar Christian Grey pelo menos lhe ofereceu certo grau de segurança na carreira, uma garantia de que ele enfim estava estabelecido? "Não", disse Dornan, "por causa do pacote único que ‘Cinquenta Tons’ representava, de ser um projeto muito criticado, e por os livros serem o que são –amados pelos fãs e severamente atacados pelos críticos. É uma situação única".

Dornan sabe que, por causa de "Cinquenta Tons de Cinza", seus fãs mais ardorosos são as mulheres, e os homens gays; se homens heterossexuais pedem sua foto, ele ainda percebe algum ceticismo. "Eles sempre dizem que ‘obviamente não é para mim; eu não sou gay, sou casado’, ou ‘tenho uma namorada que gosta de você, por isso pedi a foto’", ele disse. "Já fiz o que, três filmes de guerra? Seria de imaginar que isso ajudasse um pouco na minha conta com os caras heterossexuais, mas provavelmente não. Acho que é preciso estar no mundo dos quadrinhos para atrair a atenção deles".

Dornan está batalhando nessa frente, e já faz algum tempo (ainda antes de "The Fall", ele fez testes para ser Super-Homem, e perdeu o papel para Henry Cavill). Conquistar um papel como super-herói, agora, lhe ofereceria a oportunidade de voltar a fazer franquias cinematográficas, mas não como um novato desesperado por encontrar seu espaço e sim como ator estabelecido que já provou o que é capaz de fazer. E ele sabe que esse caminho, embora estreito, existe, porque Robert Pattinson conseguiu segui-lo, deixando para trás o papel de galã de "Crepúsculo" e usando a credibilidade que adquiriu para conquistar o papel título de "The Batman", no ano que vem.

"Eu estaria mentindo se não admitisse que acredito que ele e sua equipe fizeram uma jogada realmente inteligente", disse Dornan sobre Pattinson, de quem ele é amigo. "Tudo que ele fez desde ‘Crepúsculo’ foi realmente inteligente e cuidadosamente produzido, e filmes como esses não teriam sido financiados com base na presença dele se Robert não tivesse sido parte de uma franquia que faturou bilhões de dólares".

Dornan fala abertamente dos papéis que ambiciona, e já conversou com Kevin Feige, presidente do Marvel Studios, sobre vestir a capa e as calças justas de um super-herói. "Sou mais ambicioso do que costumava admitir", disse Dornan. Parte do motivo é ter se tornado pai. "É como que uma necessidade de prover, de sustentar, um negócio bem homem das cavernas. Preciso ter sucesso para o bem das minhas pequenas. Também, depois da morte de meu pai, há uma nova chama queimando dentro de mim, uma necessidade nova de conquistar o sucesso".

Não é um desejo de conquistar o amor que ele nunca teve da parte de seu pai. "Meu pai dizia que me amava muitas vezes, todos os dias de minha vida, e não é isso que procuro", disse Dornan. "Mas, por algum motivo, desde que ele se foi, sinto uma estranha necessidade de provar alguma coisa a mim mesmo, provar uma espécie de sucessão que impressione". Mas, agora que é ele que se vê na posição de pai, não deveria haver outro tipo de heróis na disputa?

Poucos dias depois de nossa conversa no clube de campo, falei com Dornan por vídeo para perguntar como tinha sido a estreia em sua cidade natal —"Belfast" deve estrear no Brasil apenas em fevereiro de 2022. Ele me contou que ansiedade tinha crescido muito, antes de passar.

"Foi uma loucura; fiquei me sentindo literalmente enjoado, até o momento da estreia", disse Dornan. Nos 30 minutos que antecederam o início da sessão, ele estava em seu quarto de hotel, cercado de parentes e amigos, mas nervoso a ponto de nem conseguir falar.

Mas quando caminhou pelo tapete vermelho, se acomodou no Waterfront Hall e começou a assistir ao filme, as coisas mudaram. A audiência ouvia atentamente cada palavra do diálogo, e havia eletricidade no ar. Sentado em meio às pessoas de Belfast, o trabalho de Dornan de repente começou a fazer sentido para ele. "Foi a primeira vez que vi o filme e não pensei que odeio minha cara, ou coloquei em dúvida minhas escolhas em uma cena, ou resmunguei sobre o meu nariz torto, ou pensei em deixar de atuar".

Depois do final do filme, quando espectadores o procuraram para longas conversas sobre Belfast e "Belfast", Dornan percebeu que estava vivendo uma das melhores noites de sua vida. E Branagh ajudou, na apresentação, ao dedicar a noite ao pai do ator.

"Me mata que ele não esteja comigo nessa parte da jornada, mas a vida é assim", disse Dornan. "Como papai teria nos dito, acima de tudo, o que importa é colocar um pé adiante do outro e continuar caminhando".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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