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Valerie Taylor com um tubarão em 1974 NYT

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Ashley Spencer
The New York Times

Steven Spielberg precisava de um tubarão de verdade. Antes que o jovem diretor começasse a filmar “Tubarão” com a ajuda de um monstro mecatrônico notório pelos defeitos, nas águas ao largo de Martha’s Vineyard, Massachusetts, ele contratou dois operadores de câmera especializados em fotografia submarina para filmar tubarões brancos no mar ao sul da Austrália.

Mergulhadores habilidosos e muito conhecidos em seu país de origem, Ron e Valerie Taylor saíram em busca de imagens que seriam usadas em uma das cenas culminantes do filme, rodado em 1975, na qual Hooper (Richard Dreyfuss), aparentemente seguro em uma gaiola de proteção contra tubarões, confronta o monstro que aterroriza os banhistas.

Mas, como disse Valerie Taylor, que agora é tema de um documentário, em uma recente entrevista por vídeo, de sua casa em Sydney, “é possível dirigir cenas com um cachorro, um ser humano ou um cavalo, mas não com um tubarão”.

Rapidamente se tornou claro que os Taylor estavam enfrentando duas criaturas teimosas: o tubarão e o dublê Carl Rizzo, que não sabia mergulhar e entrou em pânico no momento em que seria baixado para o mar na gaiola.

Enquanto ele vacilava no convés do barco, o tubarão se aproximou, se emaranhou nos cabos que sustentavam a gaiola e por fim abocanhou o receptáculo vazio, arrancando-o do guincho, e mergulhou com ele para as profundezas.

Ron filmou a cena toda sob a água, enquanto Valerie apanhou uma câmera no barco e filmou imagens de superfície. Spielberg ficou tão encantado com as cenas inesperadas que ordenou alterações no roteiro para acomodar a cena, mas mudou o destino de Hooper, de isca de tubarão para sobrevivente, enquanto o animal se contorcia acima.

O trabalho de Valerie Taylor em “Tubarão” é só um capítulo em sua vida incrível, que viu uma transição de praticante letal da caça submarina a cineasta e conservacionista. “Valerie era como uma super-heroína da Marvel, para mim”, disse Bettina Dalton, produtora australiana de cinema. “Ela influenciou tudo em minha carreira e em minha paixão pelo mundo natural”.

Essa reverência levou Dalton a se associar à cineasta Sally Aitken para realizar o documentário “Playing With Sharks”, para a National Geographic, que oferece um panorama sobre a carreira de Taylor e agora está disponível no serviço de streaming Disney+.

Nascida na Austrália e criada principalmente na Nova Zelândia, Valerie Taylor, 85, cresceu pobre. Ela foi hospitalizada aos 12 anos, com poliomielite, e forçada a abandonar a escola e a reaprender a andar. Começou a trabalhar como quadrinista, e mais tarde se tornou atriz de teatro, mas odiava ficar presa ao mesmo lugar todos os dias.

“Tive uma boa mãe. Ela me aconselhou a fazer o que eu gostasse, tentar o que eu gostasse, dizendo que fazer aquilo talvez me machucasse, mas que eu aprenderia”, disse enfaticamente Taylor, sacudindo os brincos vistosos sob seus cabelos prateados. Quando ela se tornou mergulhadora e caçadora submarina profissional, sua mãe ficou “horrorizada”, acrescentou Valerie. “O plano era que eu me casse e tivesse filhos”.

Ela terminou por se casar. Ron Taylor, também campeão de caça submarina, era um operador habilidoso de câmeras subaquáticas, e os dois começaram a trabalhar juntos, fazendo filmes que documentavam a vida submarina.

Valerie Taylor, com seu ar glamoroso de “Bond girl”, se tornou o ponto focal dos filmes, que davam mais dinheiro quando ela aparecia na tela. Os dois viveram juntos até que Ron morreu de leucemia, em 2012. “Lá estava aquela personagem incrível, fascinante, e ao lado dela um maravilhoso mago da técnica”, disse Aitken. “Jutos, eles criaram uma combinação vitoriosa”.

Valerie Taylor não só tinha uma presença magnética diante das câmeras como uma capacidade rara de se conectar com animais, entre os quais tubarões, que na época não eram muito compreendidos. “Todos eles têm personalidades diferentes. Alguns são tímidos, alguns gostam de intimidar, alguns são corajosos”, disse Taylor. “Quando você encontra um cardume de tubarões, precisa aprender a conhecê-los como indivíduos”.

Depois que ela matou um tubarão durante uma filmagem, na década de 1960, os Taylor tiveram uma epifania: os tubarões precisavam ser estudados e compreendidos, e não massacrados. Os dois deixaram de lado completamente a caça submarina, e Aitken compara a jornada do casal, da caça ao conservacionismo, à de John James Audubon.

“Com o meu tipo de personalidade, não costumo ficar com medo. Fico com raiva”, disse Valerie Taylor. “Mesmo quando fui mordida, simplesmente fiquei imóvel e esperei o tubarão ir embora –porque o animal tinha cometido um erro”. Ainda assim, ela reconhece, “não posso esperar que outras pessoas se comportem como eu”.

O look que sempre a caracterizou, um traje de mergulho cor de rosa acompanhado por uma fita colorida nos cabelos, podia ser entendido como uma demonstração desafiadora de feminilidade em um ramo dominado pelos homens, mas também representava uma maneira simples de ela se destacar, nas imagens submarinas que o casal registrava. “Ron queria cor, naquele mundo azul”, disse Valerie Taylor. “Ele dizia que Cousteau tinha a touca vermelha, e eu podia usar a fita vermelha. Foi o que decidimos”.

Questionada a respeito, ela minimiza a ideia de que enfrentou dificuldades adicionais por ser a única mulher em barcos repletos de homens durante a maior parte de sua vida, especialmente nas décadas de 1950 e 1960, quando a expectativa ainda continuava a ser a de que as mulheres se apegassem aos seus papéis tradicionais.

“Eu era tão boa quanto eles, e pronto. Nenhum problema”, ela disse. “E, embora eu não percebesse na época, também era tão durona quanto eles”. As realizadoras de “Playing With Sharks”, que estudaram décadas de cobertura de mídia e imagens de arquivo sobre a biografada, descreveram Taylor como uma pessoa que teve de encarar uma batalha complicada em múltiplos níveis, mas que também foi vista como uma intrigante novidade.

“É claro que ela precisou batalhar para ser levada a sério”, disse Aitken. “Ela vinha da classe trabalhadora. Era uma pessoa que teve muito pouca educação formal. Creio que a cultura a encarava como extraordinária. Isso em si pode ser um caminho libertador, precisamente porque você é singular”.

Quando “Tubarão” se tornou um sucesso instantâneo e inesperado, em 1975, os Taylor perceberam que o filme estava causando estragos que eles nunca haviam considerado: a caça recreativa de tubarões ganhou popularidade e o público passou a ter medo de legiões hipotéticas de tubarões sanguinários à espera de presas humanas, logo abaixo da superfície.

Na verdade, existem centenas de espécies de tubarões, e apenas algumas delas atacam seres humanos. Os animais que o fazem, em geral confundem pessoas com suas presas naturais, como leões marinhos. “Por algum motivo, os espectadores acreditaram naquilo. Não existe um tubarão como o do filme vivo no planeta hoje”, disse Taylor.

“Ron costumava dizer que ninguém vai a Nova York esperando ver King Kong no topo do Empire State Building. E nem deveria entrar no mar esperando encontrar o tubarão do filme”. Em 1984, ela ajudou em uma campanha para transformar o tubarão-enfermeiro na primeira espécie de tubarão protegida no planeta.

As fotos de Taylor eram publicadas pela revista National Geographic. A área em que ela e Ron Taylor filmaram suas imagens para “Tubarão” foi transformada em parque marítimo, que leva o nome deles. E ela continua a publicar artigos nos quais defende apaixonadamente os animais.

Mas as populações de tubarões foram dizimadas em todo o mundo, especialmente por causa da pesca excessiva, e Valerie Taylor disse que muitas das cenas submarinas que testemunhou quando moça já não existem.

“Odeio a velhice, mas pelo menos ela significa que eu pude estar no oceano quando ele ainda era puro”, ela disse, acrescentando que hoje “é como ir a um lugar que no passado era uma selva e ver uma plantação de milho”.

A despeito de todos os assuntos cobertos por “Playing With Sharks”, ela disse, “o filme não conta toda a minha história, de maneira alguma”. Houve a ocasião em que ela foi deixada no mar e salvou a própria vida ao se prender a um pedaço de coral com seu laço de cabelo até que outro barco chegasse.

Ou o dia em que ensinou Mick Jagger a mergulhar, simplesmente porque teve vontade. (Ele aprendeu rápido, se bem que o cinto com pesos escorregasse por seus quadris magros.) Ela também sobreviveu a um câncer de mama.

Embora Taylor ainda mergulhe, a artrite dificulta fazê-lo nas águas frias da Austrália, e ela está ansiosa por voltar a Fiji, onde nadar “é como tomar um banho”. “Não consigo mais saltar, não que eu tenha vontade especial de saltar”, ela disse. “Mas se entro no oceano, ainda posso voar”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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