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Mae Martin posa em Londres

Mae Martin posa em Londres Alexander Coggin -21.abr.2021/The New York Times

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Maya Salam
The New York Times

O plano de Mae Martin não era confrontar uma horda de demônios pessoais, em "Feel Good", a série tragicômica e em parte autobiográfica que ela estrela na Netflix. Mas as coisas aconteceram assim.

Em 12 episódios de meia hora divididos em duas temporadas —a segunda e última estreia nesta sexta (4)—, a escritora e humorista canadense desenvolve múltiplos temas pesados, entre os quais identidade de gênero, disforia de gênero, orientação sexual, fluidez sexual, abuso sexual, vício, reabilitação, pesar, abandono, fama, retribuição e repressão (e todos os traumas e dualidades associados a tudo isso).

E, contra tudo o que se poderia prever, o resultado é engraçado, imensamente caloroso e encantador. E uma história de amor. "Não queríamos de maneira alguma realizar uma missão", diz Martin em entrevista por Zoom, de Londres, em maio. "Eu não tinha a intenção de tratar desses assuntos altamente politizados e contenciosos —mas eles afetam minha vida pessoalmente."

Baseada principalmente na vida de Martin, "Feel Good" acompanha uma personagem também chamada Mae Martin, que cresceu em Toronto, começou a fazer humor stand-up na adolescência, e foi expulsa de casa anos depois por seu vício em drogas. (Na série, Lisa Kudrow interpreta sua mãe, e Charlotte Ritchie interpreta sua namorada).

Depois de mergulhar de cabeça em um romance problemático no episódio um, os perigos da natureza de Mae e a propensão ao vício afloram. O caminho para a cura é tortuoso, e repleto de obstáculos.

Martin, que é “muito bissexual”, não binária e usa pronomes neutros, e Joe Hampson, cocriador da série, propuseram criar uma história realista e acessível sobre a complexidade dos relacionamentos, e sobre o comportamento viciante, “coisas que conheço muito bem”, diz Martin.

Ela começou a fazer stand-up em Toronto aos 13 anos, e terminou abandonando a escola para trabalhar no grupo de humor Second City, inicialmente como bilheteria e mais tarde no palco.

Martin conheceu Hampson num festival de comédia em 2012, e os dois propuseram diversas ideias para séries —de ficção científica, mistério e outros gêneros— que ninguém se interessou por produzir. O que foi até bom, diz Martin. "Eram péssimas."

Em seguida, o Channel 4, do Reino Unido, a procurou, depois de ver seu show de stand-up "Dope", em 2017, cujo tema era amor e vício. A ideia era "criar alguma coisa com mais jeito de comédia dramática, e com narrativa", diz Martin.

"Feel Good" estreou em março de 2020 no Channel 4, e em seguida na Netflix em todo o mundo. Martin recentemente foi indicada ao prêmio Bafta por seu trabalho como atriz na série. Em dezembro, a Netflix confirmou uma segunda temporada de “Feel Good” (o plano sempre foi uma série de duas temporadas.)

“‘Feel Good’, honestamente, é um sonho de infância realizado”, afirma Martin, “o sonho de ser capaz de conquistar a garota”. “Eu cresci querendo ser galã”, completa Martin.

Ao longo do caminho, ela conquistou admiradores famosos, como o ator Elliot Page, indicado ao Oscar, que neste mês se definiu como “fã e amigo” de Martin, em uma mensagem de email. “A integridade, vulnerabilidade e inteligência de Mae a destacam como pessoa e como força criativa a ser respeitada”, disse Page. "Quando vi seu trabalho pela primeira vez, fiquei surpreso com o retrato honesto e nuançado de gênero e sexualidade, e isso claramente também ressoa com outras pessoas."

Martin, 34, mas aparentando ser muito mais jovem, parece quase incandescente, com cabelos curtos e quase brancos, e olhos grandes e claros —imagine um elfo de “O Senhor dos Anéis”, mas um elfo que goste de virar noites nos clubes de comédia mais sujinhos da Terramédia.

Uma nova turnê de stand-up, intitulada “Sap”, vai estrear no final do ano no Reino Unido e tratar “da maneira como nos enquadramos ao quanto as coisas parecem ruins, o tempo todo, mas mesmo assim nos mantemos à tona”, diz Martin. É algo que “reflete mais o que meu cérebro vem sendo nesse último ano”.

Confira trechos editados da conversa.

Você cobre um território vasto em "Feel Good" e, embora o texto seja com certeza franco, é ainda assim muito delicado.
Sempre que você tenta ensinar alguma coisa às pessoas, pode causar polêmica. Coisas como gênero e agressão sexual são cooptadas por forças políticas polarizadoras e surge uma conversação realmente conflituosa em torno delas, e você precisa ser definitivo naquilo que diz. Tudo se torna uma declaração tirada de contexto, tudo é inflamatório. Por isso era importante para nós que lidássemos com as coisas de forma a mostrar a humanidade da situação. Só queríamos, de verdade, abraçar a ambiguidade e as nuanças; não queríamos ser redutivos.

A série explora áreas cinzentas da experiência: entre o prazer e a dor, entre a vida adulta e a adolescência, entre a confiança e a vergonha. Como espectadora, meu impulso é encaminhar você a uma paz interior, mas não é isso exatamente que você produz.
Havia alguma discussão, entre as pessoas com quem trabalho, sobre chegar a algum lugar mais definitivo, com relação a algumas das questões, mas era importante para mim manter o tom. Eu meio que existo nessa área cinzenta, em minha vida, entre o otimismo e o pessimismo. Acho que muita gente faz o mesmo —entre o desdém por elas mesmas e a arrogância. Somos todos puxados nessas direções conflitantes.
E mesmo com a identidade não binária, acho que muitas das conversas sobre gênero presumem que a questão seja ir de um binário para outro. E minha experiência de gênero sempre foi muito mais fluida. Não existe muito espaço para incerteza, em boa parte dessas conversas. Eu me sinto muito incerta sobre diversas coisas, e não teria sido honesto ser prescritiva.

Você também consegue falar honestamente a audiências queer, e de certa forma educa as audiências heteronormativas sobre a dinâmica dos relacionamentos homossexuais, sem ser condescendente.
Quando eu era adolescente, ou estava na casa dos 20 anos, nunca vi o tipo de sexo que faço representado na tela. E por isso era importante para mim que o retrato fosse autêntico. Nós resistimos a alguns comentários da rede sobre a série, porque acreditávamos que eles estavam encorajando que fôssemos mais condescendentes com a audiência —como se quisessem que demonstrássemos, “olha, é assim que funciona”. Nós preferimos mostrar a coisa como é. As pessoas entendem rapidinho.

As cenas de sexo são bem diretas, mas também existem como parte de uma história mais ampla. Por que era importante para você não apenas aludir a esses atos e experiências?
O sexo queer muitas vezes é descrito como muito terno, hesitante. No papel, aquele casal em que você deveria acreditar tem muito pouco em comum, e eles ocasionalmente provocam o que o outro tem de pior. Por isso era importante que a audiência pensasse em que nós somos sexualmente muito, muito compatíveis. A serie não faria sentido de outro modo.
Foi interessante ver as reações à série. Algumas delas eram do tipo “mas há sexo demais”. Na verdade, foram duas cenas na primeira temporada e acho que duas na segunda. Comparado a “Girls” ou “Fleabag” ou qualquer desses programas, é bem pouco sexo. Mas as cenas chamaram a atenção das pessoas, acho que porque mostramos sexo que é diferente.
Há muita coisa acontecendo, em termos emocionais e narrativos, nas cenas de sexo. Em algumas coisas queer que vi, muitas vezes dirigidas por homens heterossexuais, a sensação às vezes é de que fizemos uma pausa e de repente estamos assistindo àquele sexo estranho e nada realista. Era importante para nós que não parecesse voyeurismo.

Interpretar a pessoa queer problemática, um velho clichê do cinema e televisão, a incomodou?
Com certeza. Uma coisa, e acho que é verdade para outros grupos menos representados, é que acredito que, quanto mais representação houver, mais você poderá ter personagens falhos, egoístas, e eles não precisarão ser vítimas da homofobia ou do racismo nem mostrar heroísmo. Podem ser pessoas reais, tridimensionais, que cometem erros.
Alguém comentou que “eu preferiria que esse relacionamento não fosse complicado”. Mas não teria sido autêntico. Não tive muitos relacionamentos sem falhas. (risos.) O que achei mais interessante era que os personagens, a homofobia que encontram, é o mais das vezes algo que eles sentem por dentro. E isso é algo que encontrei muitas vezes. Muitas das pessoas com quem namorei eram heterossexuais antes de começarem a sair comigo. É um processo pelo qual passei muitas vezes e pelo qual sinto empatia, aquela vergonha internalizada.

Como você separa onde termina a Mae real e começa a personagem?
Ainda estou trabalhando nisso, na fronteira entre fato e ficção. A personagem está onde eu estava dez anos atrás. A verdade emocional é real —muitas das situações ou pessoas foram disfarçadas, ou inventadas, mas existe muita verdade na história.

Como é sua relação com o stand-up? O que a inspirou a tentar a sorte no ramo tão jovem?
Eu sei o que me atraiu. Mas não sei o que me fez levantar da cadeira e tentar. Meus pais eram fãs de humor. Eu sempre senti vontade de alegrar as pessoas. Todos os humoristas que meus pais adoravam —Steve Martin, e meu pai amava o humor britânico—, para mim eram como astros do rock. O que eles faziam me parecia mágico. Fui com meus pais a um clube de comédia quando eu tinha 11 anos.
Conseguir fazer com que alguém ria é muito empoderador. Quando comecei, portanto, eu subia ao palco e dizia coisas sobre mim mesma que tinha medo de ouvir ditas pelos “bullies”. E de repente eu estava meio que sendo aplaudida por todo tipo de coisa estranha a meu respeito, coisas que poderiam me destruir na escola. O stand-up parecia um ambiente mais seguro que a escola.

Há momentos em “Feel Good” em que você critica bastante a cultura da comédia e dos bastidores da comédia.
Espero que eu tenha sido justa e que o amor genuíno que sinto fique visível. Todos os meus amigos são homens, heterossexuais e humoristas, e cresci com eles. Claro que há abutres em todo ramo, provavelmente, e isso ainda é problemas no mundo da comédia. Acho que mal toquei na superfície do problema. A comédia pode ter me exposto a um mundo perigoso, mas também me salvou dele.

Você declarou mais de uma vez que não pretendia falar de assuntos assim pesados. Você se preocupa com a possibilidade de que as pessoas interpretem mal suas intenções?
Sempre tomo o maior cuidado para não ser moralista. Tenho medo de soar hipócrita, e gosto de lembrar as pessoas de que sou só uma humorista burra. Sexo e gênero são as coisas que significam algo para mim no momento, é só isso. Talvez eu devesse levantar essa bandeira e pronto. Por que sentir vergonha disso?

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci.

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