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O ator Joseph Fiennes Instagram/justjosephfiennes

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Kathryn Shattuck
The New York Times

A entrevista tem spoilers sobre o final de temporada de “The Handmaid’s Tale”.

Que Deus o tenha, enfim: Fred Waterford, o comandante inescrutavelmente sádico que tinha papel central em “The Handmaid’s Tale”, enfim, recebeu o que merecia. E Joseph Fiennes, o ator que o interpretou, mal podia esperar para abandonar aquela pele.

“A filmagem terminou as seis da manhã, e eu fui direto para o trailer da maquiagem para tirar a barba de Fred, e começar o processo de descartar aquele horror”, diz Fiennes sobre a gravação do episódio final da temporada quatro, no qual June (Elisabeth Moss), enraivecida, dá o troco pelo que sofreu.

Depois de descobrir que o homem que a estuprou e atormentou havia evitado a prisão ao se tornar informante do governo, June persuade seus aliados a organizar uma jogada dúplice. Fred, que acredita estar destinado a uma vida de liberdade, será entregue a Gilead e seu sistema de Justiça draconiano —que ele ajudou a construir e a infligir às mulheres de sua terra.

Mas quando parece que as coisas não poderiam ficar piores para ele, Fred é entregue a June. "Corra", June ordena a Fred, que está algemado, empurrando-o para uma área de território desocupado entre o Canadá e os Estados Unidos.

E subitamente mulheres surgem dos densos bosques, enquanto June e seu quadro de refugiadas de Gilead realizam uma cerimônia de "salvamento", um eufemismo para execução pública, como aquelas de que as aias eram forçadas a participar.

Quando vemos Fred pela última vez, ele está pendurado de um muro, e seu dedo decepado é colocado em um envelope endereçado a sua mulher, Serena (Yvonne Strahovski).

Fiennes já vinha antecipando a morte de Fred há algum tempo, desde que Bruce Miller, o showrunner da série, deu a entender que a temporada três seria a última para seu personagem. "Tive sorte de chegar até aqui", Fiennes se recorda de ter dito.

Mas a temporada passada veio e terminou, e Miller lhe disse que talvez seu fim viesse na temporada quatro. "Fico muito feliz por ter acontecido no episódio final", diz Fiennes. "É ótimo que a audiência possa ter esse tipo de catarse."

Ele estava falando via Zoom, de sua casa em Majorca. Fiennes tinha o rosto barbeado e uma camisa da cor do Mediterrâneo, e com mais botões desabotoados do que seu personagem fundamentalista jamais teria arriscado na série.

As cenas finais de Fred foram gravadas em março, ele diz, e desde então Fiennes vem meditando sobre "perder o resíduo de Fred Waterford". O ator admite ter ficado triste por filmar sua despedida em meio à ansiedade da pandemia, e com sua família do outro lado do planeta.

"A série não tem muito de positivo, e o personagem que interpretei não é esclarecido, inspirador", diz. "Os componentes do trabalho não são de um tipo que faça você ter vontade de sair logo da cama e começar."

A seguir, trechos editados de nossa conversa.

Fred enfim recebe o que merece. O que você imagina que ele estivesse pensando, em seus momentos finais?
Amo o fato de que, quando ele chega ao bosque, esteja acorrentado pelo pescoço e agrilhoado. Fred está sentindo pelo menos um gostinho do medo causado a todas as pessoas que ele e seu regime submeteram a um inferno. De muitas maneiras, era disso que a audiência precisava. Mas Fred também precisava disso. Parte de sua libertação e catarse é que ele precisa passar por isso a fim de compreender completamente. Não há como explicar coisas intelectualmente a pessoas como ele.

Como foi o trabalho físico da cena em que ele é perseguido e surrado, em sua execução?
A cena foi filmada de um modo maravilhoso, através de uma floresta muito, muito densa e enlameada, às três da manhã, com uma câmera correndo sobre cabos lá no alto, e capaz de uma velocidade de até 30 km/h. Por mais que você corresse, a câmera estaria à sua frente.
Eu tive de fazer a corrida só três ou quatro vezes, e depois, para as tomadas de longe, a função ficou para um dublê. Mas tenho certeza que, exceto por uma tomada feita com a ajuda de um drone, todas as dores infligidas a Fred foram infligidas a mim. Eu estava bem acolchoado, para que as pessoas pudessem rasgar minhas roupas e sentar a bota. Foi aterrorizante, de verdade.

Mesmo antes da execução, há momentos em que Fred parece compreender a dor que ele causou às mulheres de Gilead, após descobrir que Serena está grávida dele. E há o testemunho dilacerante de June, no qual ela detalha os sofrimentos que ele lhe impôs.
É importante para Fred que a capacidade de Serena para dar à luz um menino cumpra todas as normas de Gilead. E a sensação de que ele pode perder isso lhe dá uma nova perspectiva. Os diversos meses que ele passou em sua cela cinco estrelas lhe propiciaram momentos de reflexão, não só sobre como manobrar de forma a escapar das responsabilidades, mas de como reposicionar a narrativa de forma a lançar a culpa sobre a vítima, que é o que todo predador faz. No entanto, por tudo isso, existe a sensação de ele ouvir claramente sobre todos os horrores que infligiu.

Isso basta para trazer redenção?
Não. Fred é um reincidente —um monstro misógino feio e patético que jamais mudará. Minha sensação era a de que Fred não se redimiria da maneira que desejamos ver nos filmes. E sempre escolhi, creio, o curso mais difícil, que era o de manter o seu amor ao poder e o aspecto predatório oculto por trás de sua teocracia, suas crenças e sua religião.
As pessoas que precisam mudar são aquelas que perdoam, o que é o paradoxo interessante da jornada de June. Ela se transforma naquilo que busca destruir. Ela recria Gilead inteiramente, no Canadá. É claro que June é o produto horrível de tudo que aconteceu, não por sua culpa.

Você já disse que o personagem Fred não é descrito em profundidade no romance de Margaret Atwood. O que você fez para lhe dar mais profundidade?
Havia pistas no livro. Uma delas, que eu amo e é a verdadeira base de Fred, é que Atwood o descreve como um membro patético e definhado que vive dentro de uma bota militar. Por isso a escrivaninha de mogno, o jaquetão, a barba —toda sua blindagem, por assim dizer— servem para compensar a verdade do quanto ele é patético. É uma meditação sobre os efeitos corrosivos do ego e do poder, mais que das crenças religiosas extremistas.

E, no entanto, ele às vezes parece quase atraente, se é que posso ousar essa afirmação. Foi intencional?
Sim, com certeza. Eu sempre quis que ele seguisse a linha de Gilead e jamais hesitasse em sua crença, mas que também fosse humano. Quanto mais humano ele parece, mais aterrorizante. É uma linha complexa em que é preciso honrar a face de Gilead e a pessoa que desejamos ver derrubada. Não se pode torná-lo transcendente demais porque, nesse caso, contra quem estaríamos lutando?

Qual é sua interpretação da cena final entre June e Luke depois da execução, na qual ela segura sua filha, Nicole, enquanto ele, sentado no chão, a olha com cara de mágoa?
Creio que June se tornou uma mulher diferente, muito para o horror de Luke. Ela tem sangue nas mãos, metafórica e literalmente. É o paradoxo da vingança. Ela se tornou um produto de Gilead. Para mim, é muito comovente e muito difícil de assistir. Queremos que a audiência se levante, aplauda. Mas à custa de que a personagem perca seu eu espiritual? Derrubar o regime, contra-atacar —sou completamente a favor disso. Mas o que vemos é que isso abre ainda mais feridas e não traz a resolução que eles procuram.

Como foi, para o elenco, passar quatro temporadas afundado em brutalidade?
No cerne havia um grande amor e respeito entre nós, e uma vontade de honrar Atwood, via Bruce. E também há o fato de o quanto a série se provou presciente. Porque nossos roteiristas foram clarividentes, sabíamos que havia muitos paralelos extremamente reais para as pessoas.
E existe uma responsabilidade que acompanha isso. É uma sensação de saber que estamos participando de uma narrativa extraordinária, uma narrativa feminista vital e importante que reflete as circunstâncias em que vivemos hoje.
Mas sempre tivemos momentos e interações muito alegres. E talvez, quanto mais escura e sombria seja a obra, mais felizes, engraçados e joviais todos os participantes se tornem. Talvez se a série fosse uma comédia, nós vivêssemos brigando.

E quanto às críticas de que a série não passa de uma espécie de pornografia de tortura?
Entendo o ponto, e considero válido. Sim, em diversas circunstâncias talvez tenhamos ido longe demais. Mas sinto que nunca chegamos a uma violência gratuita. Creio que as cenas se justificam; se penso sobre tortura e mutilação fora de nosso mundo distópico, no mundo real isso tudo continua. E não hesitamos em mostrar essa realidade.

Por quanto tempo a série pode continuar, e por quanto tempo você acha que ela deveria continuar?
Agora que Fred está fora, a série obviamente acabou. Deveria parar (risos). Temos "The Testaments" (a continuação do romance original, publicada por Atwood em 2019), e isso é uma maravilhosa oportunidade para uma continuação. Bruce não revela muito. Ele diz que adoraria continuar por quanto tempo Lizzy quiser continuar, e posso entender a lógica disso. Nós nos afastamos do livro, e por isso sinto que foi criada uma paisagem que continua a ser rica, madura e fascinante.

Como foi se despedir dos colegas de elenco? Porque Fred não deve voltar dos mortos, não é?
Ele está morto, mas sempre existem os flashbacks, e por isso quem pode dizer? (risos.) Sinto saudades de todos eles, mas minha sensação é que passei o tempo certo na série. Posso até ter ficado mais tempo do que deveria. Mas na vida de um ator, uma pessoa tem uma ou duas oportunidades maravilhosas. E por mais sombria e difícil que a série tenha sido, com certeza ela foi uma das minhas grandes oportunidades.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci.

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