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Nova série da Netflix explora crime político durante a Reunificação da Alemanha

Documentário aborda teorias conspiratórias e tensão social após queda do Muro

Documentário "Rohwedder" apresenta um extenso painel das tensões dos anos 1989 a 1991
Documentário "Rohwedder" apresenta um extenso painel das tensões dos anos 1989 a 1991 - Netflix
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Em 1991, Detlev Rohwedder, chefe do programa de privatizações na Alemanha Oriental, era morto. Primeiro documentário 100% alemão da Netflix aborda teorias conspiratórias sobre o caso e tensão social após queda do Muro.1º de abril de 1991. Três disparos efetuados por um sniper rompem o silêncio num tranquilo bairro de alto padrão de Düssseldorf, no oeste da Alemanha. Uma das balas atinge um homem de 58 anos, no segundo andar da sua casa.

A vítima é um dos homens mais poderosos da Alemanha recém-reunificada: Detlev Rohwedder, chefe da Treuhandanstalt, a instituição responsável por reestruturar e privatizar as milhares de estatais da antiga Alemanha Oriental.

Quase 30 anos depois, ninguém foi julgado pelo crime, que ocorreu em meio à tensão dos primeiros anos da Reunificação e um clima de insatisfação generalizada nos "novos estados" da Alemanha com o fechamento de centenas de milhares de postos de trabalho.

Esse crime é o tema do primeira série documental 100% alemã da Netflix. Dividida em quatro partes, Rohwedder - Unidade, Assassinato e Liberdade: Um crime perfeito (ou Uma Morte em Vermelho, o título disponibilizado na versão brasileira da plataforma), entrou na programação da Netflix na última sexta-feira (25/09), pouco antes do aniversário de 30 anos da Reunificação alemã.

O documentário apresenta um extenso painel das tensões dos anos 1989 a 1991, lembrando que os primeiros anos após a Reunificação não são apenas compostos por alegres cidadãos dando golpes de picareta no Muro de Berlim.

Outro foco da série é apresentar cenários especulativos para o crime, reavivando antigas teorias conspiratórias de que o assassinato teria sido cometido por agentes da Stasi (o infame serviço de segurança da Alemanha Oriental) ou por um conspiração político-empresarial ligada a um suposto deep state (Estado profundo) da Alemanha Ocidental.

Em 1991, na cena do crime, investigadores encontraram, a 63 metros da casa de Rohwedder, três cartuchos vazios, pontas de cigarro e um manifesto com o emblema da Fração do Exército Vermelho (RAF, na sigla em alemão), grupo terrorista de extrema esquerda, mais conhecido fora da Alemanha como Baader-Meinhof.

Rohwedder, um político social-democrata e ex-executivo do conglomerado químico Hoesch, era um alvo óbvio para a RAF por seu papel na reforma da economia da antiga Alemanha Oriental. Nos anos anteriores, o grupo já havia assassinado banqueiros, políticos e outros membros do establishment alemão-ocidental.

Ao assumir a chefia da Treuhandanstalt - ou Treuhand - a pedido do então chanceler, Helmut Kohl, Rohwedder deu início a um processo que culminaria na entrega de 94% das estatais da Alemanha Oriental para companhias e empresários do oeste. Pouco ficou nas mãos dos antigos alemães-orientais e a reestruturação e fechamento em massa de empresas fez o desemprego disparar, arrasando comunidades e provocando uma insatisfação no leste que ainda é sentida.

O trabalho de reconstituição do clima no documentário é vasto, listando 24 diferentes arquivos de imagem e som da Alemanha

À frente da Treuhand, Rohwedder teve que enfrentar intensos protestos de desempregados em frente à sede da instituição, instalada num prédio da antiga Berlim Oriental. Seu trabalho também era diariamente massacrado pela imprensa. O documentário mostra como o próprio Rohwedder não via a tarefa com prazer, mas como um mal necessário diante do colapso iminente da economia dos chamados novos estados federais, castigados por décadas de ineficiência e defasagem tecnológica em relação ao oeste. Ele chegou a considerar deixar o posto antes do crime, mas foi demovido por Kohl e por seu ministro das Finanças, Theo Waigel.

Perguntas em aberto alimentam teorias conspiratórias

A sofisticação da operação para matar Rohwedder provocou espanto à época. O atirador mirou em Rohwedder quando o político se encontrava justamente em frente a uma janela do escritório no segundo andar da sua casa, uma das poucas que não estava equipada com vidro à prova de balas. Questões envolvendo como o atirador soube dessa deficiência na casa e por que Rohwedder não contava com segurança adequada, apesar de sua condição de "homem mais odiado da Alemanha Oriental", nunca foram satisfatoriamente respondidas.

Esses elementos já tinham alimentado teorias conspiratórias nos anos 1990, incluindo um livro lançado em 1997 por um jornalista que mais tarde passaria a se dedicar a difundir que os americanos nunca pisaram na Lula e que o Clube de Bilderberg controla secretamente o mundo.

De maneira problemática, a produção da Netflix resgata essas velhas teorias conspiratórias, adotando uma abordagem especulativa sobre o crime e dando voz para personagens que duvidam que ele tenha sido cometido pela RAF. Numa prática comum de outros documentários estilo true crime da Netflix, os produtores esbanjam no suspense.

No entanto, têm pouco a oferecer para fundamentar essas especulações que fogem da explicação oficial envolvendo a RAF. Para reforçar a narrativa, o documentário apresenta dramatizações dos cenários alternativos, no mesmo estilo do clássico japonês Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, que exibe diferentes pontos de vista, muitas vezes contraditórios, para um caso de assassinato.

Em Rohwedder, essas dramatizações envolvem mostrar diferentes grupos de atores interpretando atiradores, incluindo um cenário que mostra uma equipe plantando provas para incriminar a RAF. Entrevistados, que incluem alguns ex-investigadores (um deles não mostra o rosto) reforçam as especulações, apontando que Rohwedder pode ter sido morto pela Stasi porque estava perto de descobrir que o serviço de segurança tinha desviado milhões durante o período comunista.

Em outro cenário, empresários e políticos do deep state arquitetaram a morte de Rohwedder para apresentá-lo como mártir e enfraquecer manifestações contra privatizações. Por fim, o cenário mais alinhado com a explicação oficial do caso, mostra glamourosos e jovens membros da Stasi executando o crime.

O documentário do trio do produtor Christian Beetz e dos diretores Georg Tschurtschenthaler Jan Peter também exibe entrevistas com figuras mais convencionais, como o ex-ministro Theo Waigel, que elogia a figura de Rohwedder, descrito por ele como um "patriota". Também aparecem dois idosos ex-terroristas da RAF, que já não eram mais membros quando o crime foi cometido, mas que alimentam a especulação de que Rohwedder não foi morto pelo grupo.

Especulações sem base, mas que fornecem suspense

Apesar do impecável trabalho de contextualização da época do crime, Uma Morte em Vermelho parece repetir problemas de outras séries da Netflix, que já despertaram acusações de que os cineastas criam um suspense artificial para favorecer maratonas entre os espectadores, chegando a suprimir informações relevantes que enfraqueceriam a narrativa. Um dos grandes sucessos da Netflix, Making a Murderer despertou acusações parecidas.

Já na série sobre Rohwedder, algumas omissões ou tentativas de minimização são aparentes. Uma das provas cruciais que liga à RAF ao caso, um fio de cabelo encontrado na cena do crime, só é abordada no capítulo que trata da suposta conspiração do deep state, como se fosse uma peça a ser desconsiderada.

O fio de cabelo em questão pertencia a Wolfgang Grams, um membro da RAF que morreu num tiroteio com a polícia em 1993. Só em 2001, com o avanço das técnicas de DNA, foi possível ligar o material a Grams. Mas quando a evidência é finalmente apresentada no documentário, a série já gastou vários capítulos abordando teorias conspiratórias, fazendo com que a explicação oficial pareça ingênua. Até mesmo o resultado de uma análise do manifesto encontrado no local do crime, que apontou que logo da RAF no documento foi impresso com a mesma matriz de outros textos divulgados pelo grupo, é apresentado como um elemento menor.

O documentário também evita mencionar uma entrevista de Birgit Hogefeld, que fez parte da mesma célula terrorista de Grams. Em 1997, ainda na cadeia, ela falou abertamente sobre o crime para a revista Der Spiegel, afirmando que Rohwedder foi escolhido como alvo para que a RAF se reaproximasse da esquerda tradicional, que estava organizando os protestos contra a Treuhand.

Na entrevista, ela ridiculariza especulações sobre a participação da Stasi ou de um deep state ocidental no crime e admite que o assassinato saiu pela culatra, acabando por enfraquecer os protestos. "O fato de que tais teorias acabaram por surgir também foi resultado de erros de julgamento resultantes do isolamento do grupo da sociedade real", disse Hogefeld.

Diante dessa abordagem dos cineastas, o jornal de esquerda Taz, apontou que o documentário "não fornece uma única prova de que outras forças além da RAF mataram Rohwedder" e que a maior parte dos entrevistados está "apenas especulando de maneira extravagante" e que as explicações alternativas para o crime apresentadas "claramente pertencem ao reino da ficção".

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