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Inspirado em 'Corra!', série 'Lovecraft Country' usa o terror como forma de discussão social

Produção estreia neste domingo (16) no canal pago HBO

Cena de "Lovecraft Country" Divulgação

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Salamishah Tillet

“Lovecrat Country”, que estreia em 16 de agosto na HBO, conta as histórias entrelaçadas de duas famílias negras que viajam pelo norte dos Estados Unidos na era da segregação racial e enfrentam monstros --alguns deles fantásticos (feras cinzentas chamadas Velhos Deuses) e outros não menos horríveis por terem base na realidade (xerifes racistas, oligarcas predatórios).

Criada por Misha Green (“Underground”), a série acompanha Atticus, um veterano do exército interpretado por Jonathan Majors (“Da 5 Bloods”), em sua busca pelo pai desaparecido, interpretado por Michael Kenneth Williams (“The Wire”).

Carregando com ele uma cópia do “Guia de Viagens Seguras para Negros”, versão ficcional do “The Negro Motorist Green Book” histórico, Atticus, seu tio George (Courtney B. Vance) e sua amiga Letitia (Jurnee Smollett) viajam pelos bosques sombrios e estradinhas assustadoras da Nova Inglaterra da metade da década de 1950.

Com sua mistura densa de ameaça sobrenatural e ameaça social, “Lovecraft Country” se inspira em filmes como “Corra!”, de Jordan Peele, usando o cinema de terror como forma de comentário social sobre as relações raciais nos Estados Unidos.

“No terror, sempre existe uma ansiedade, a sensação de que você pode perder a vida a qualquer momento”, disse Green. “E essa é a experiência dos negros”.

Para tornar a história ainda mais potente, “Lovecraft Country”, como o romance de Matt Ruff que o inspirou, publicado em 2016, se apodera das criações apavorantes de um racista tóxico a fim de contar sua história.

O título se refere a H.P. Lovecraft, escritor do começo do século 20 conhecido por ter inventado o gênero “horror cósmico” e por povoar suas histórias apavorantes com os personagens misantropos, demônios assustadores e medo onipresente que também adornam “Lovecraft Country”.

Lovecraft é igualmente conhecido por aprovar Hitler e considerar que os linchamentos no sul dos Estados Unidos eram um mal necessário a fim de impedir relacionamentos inter-raciais. (“Qualquer coisa é melhor que a miscigenação”, ele escreveu.) No romance, Ruff inverte esse legado ao centrar a história em personagens negros e torná-la uma parábola sobre escapar à constrição da supremacia branca.

Green expande ainda mais a ideia, combinando gêneros cinematográficos e referenciando obras de escritores como James Baldwin e Ntozake Shange a fim de criar uma série provocativa, que chega às telas em meio a um diálogo nacional mais amplo sobre raça e representação.

“Eu falei sobre as mesmas coisas e os mesmos temas em ‘Underground’, e isso foi há quatro anos”, disse Green. “Agora sinto que há mais pessoas conscientes sobre o que está acontecendo, pessoas que talvez no passado não estivessem tão conscientes”.

“Underground”, um elegante thriller de época sobre a Ferrovia Subterrânea, foi o que primeiro atraiu Peele, um dos produtores executivos de “Lovecraft Country”, para o trabalho de Green. Quando ele descobriu que ela era fã de histórias de terror, como ele, “surgiu uma química instantânea, uma percepção instantânea de que amamos as mesmas coisas, ainda que as façamos um pouco diferente”, ele disse, em entrevista por telefone.

Como os filmes de Peele --o próximo, com estreia no quarto trimestre, será “Candyman”, que ele ajudou a roteirizar e produziu como sequência atual ao filme homônimo de terror de Bernard Rose, lançado em 1992--, “Lovecraft Country” combina críticas astutas e aguçadas e imagens apavorantes, e busca se manter fiel às suas origens na literatura “pulp”. Peele diz que “quando um projeto faz isso com a ousadia necessária, a ressonância é intensa”.

“Quando eu estava escrevendo ‘Corra!’, ficava imaginando que talvez aquilo fosse um desastre”, ele acrescentou. “O fato de que tenha funcionado valida muito essa ideia, para mim”.

O outro produtor renomado da série, J.J. Abrams (da série “Star Wars”), ficou igualmente cativado pela “escrita completamente destemida” dos roteiros de Green. “Ela é maravilhosa na página”, disse Abrams, em entrevista por telefone. “Tem essa capacidade de mergulhar completa e profundamente naquilo que está fazendo, sem olhar para trás e se preocupar como que os outros possam pensar”.

Em entrevista via Zoom com Green, que também é produtora executiva da série, ela discutiu sua obsessão duradoura com as histórias de terror e explicou que de que a sensação de medo e perigo em sua obra não é uma alegoria, mas uma realidade viva para as pessoas negras.

*

Abaixo, trechos editados da conversa:

Você sempre gostou de histórias de terror?
Sempre tive uma preocupação com aquilo que estamos dispostos a fazer por nossa sobrevivência, metafórica e física. O terror se movimenta nessa direção de maneira realmente fácil. Lembro de ter assistido “Aliens” e de pensar que, meu Deus, você está presa em uma nave com um alienígena e precisa sobreviver. O que isso pode levá-lo a fazer? Mas meu interesse real começou com “Goosebumps”, de R.L. Stine. Era horror leve, mas as histórias me assustaram quando eu era criança. E também me intrigaram. “It: a Coisa”, de Stephen King, é o meu livro favorito de todos os tempos. Eu era aquela menina que ia à biblioteca e ficava perguntando se eles tinham mais livros de Stephen King. “Tem? Ótimo!” No dia seguinte: “Me dê o próximo”.

Embora Lovecraft tenha escrito contos e cartas racistas, você considera refrescante que Matt Ruff, um escritor branco, tenha tentado descrever seus personagens negros como multidimensionais, em “Lovecraft Country”?
Li H.P. Lovecraft e compreendo por que ele influenciou tanto a literatura de terror. Mas por conta de seu histórico, nunca fui grande fã. Quando li o livro de Matt, percebi logo que era legítimo, e achei ótimo.
Mas veja só: que um escritor branco não seja capaz de se colocar no lugar de pessoas negras me confunde. Isso deveria ser automático –muitas pessoas não brancas já se colocaram no lugar de pessoas brancas. Mulheres se colocaram no lugar de homens. É triste termos de agradecer a alguém por ele ter pesquisado um pouco e por ver pessoas como pessoas.

Você fez algumas alterações significativas na história, entre as quais acrescentar uma mulher como antagonista importante, Christina Braithwhite (Abbey Lee). Ela não existia no livro. Por quê?
O livro tinha uma postura muito feminista. Leti salvava a situação em muitos momentos, e ela era uma personagem com uma vida interior tão rica –eu queria ver mais disso. Além de me presentear com seu livro, um grande presente, o outro presente de Matt foi me dizer que a história era minha agora, e que eu devia me sentir livre para mudá-la.
Quanto a Christina, não é tão complicado. Se estamos explorando níveis de poder e usando mágica como uma sobreposição disso, parecia certo explorar o que essa situação poderia significar para uma mulher branca que tecnicamente não tem poder mas roubou algum poder, roubou esse poder de pessoas como eles. Como nosso povo está tecnicamente roubando o poder que lhe foi roubado. E ao mudar Horace (no livro, um jovem adolescente) e transformá-lo em Diana, estamos falando do #SayHerName (uma campanha dedicada a mulheres e meninas negras vítimas da violência). Quando estávamos escrevendo, descobrimos como essas coisas eram para os meninos adolescentes negros. Mas como eram para as meninas negras, que também estão vivendo um filme de terror aonde quer que vão?

É justo descrever sua série como terror? Ou isso é restritivo demais?
Nunca achei que terror fosse restritivo. Sempre que as pessoas falam sobre “terror elevado”, pergunto qual é o problema do terror não elevado. Gosto de filmes sangrentos como “A Hora do Pesadelo”. Mas quando comecei a pensar mesmo no gênero, eu questionava por que não havia personagens negros, ou por que os negros morriam nos primeiros 10 minutos. Por isso, quando li o livro de Matt, minha impressão foi a de que ele retomou esse espaço no terror que não estava reservado aos não brancos, e o fez de um jeito bonito.
Foi minha proposta para a HBO. Podemos decolar usando esse livro como plataforma, retomar a retomada, e fazer um programa de TV para pessoas não brancas. Nesse sentido, não é só uma série de terror mas uma série de todos os gêneros. Na sala dos roteiristas, tínhamos referências para cada episódio. Quanto a sociedades secretas, era “O Iluminado” e “De Olhos Bem Fechados”. Para histórias de fantasmas, “Poltergeist” ou “Horror em Amityville”. Para aventura, “Indiana Jones” e os Goonies. E eu pensei que a série podia ser tudo isso.
Mas, em resumo, é só um drama familiar, e queríamos amar os personagens e aquilo por que eles estavam passando. O que empolga é ver pessoas não brancas, que não costumam estrelar histórias desse gênero, ocupando esse espaço agora.

O que o terror lhe dá a possibilidade de fazer que outro gênero não daria? A história racial dos Estados Unidos não é em si uma história de terror?
Questiono (que essa seja a opinião de todos sobre nossa história). Olho ao meu redor e penso que “isso é horrível”. Mas para outras pessoas, é só um vídeo que elas viram online. “Vi o vídeo online. Terrível. Vou postar um quadrado negro a respeito”.
Nós nos protegemos contra ingressar no verdadeiro horror, porque é ruim demais. A arte desse gênero é criar uma porta de entrada, porque no final a heroína matará o monstro e sobreviverá. Isso faz com que a pessoa se sinta mais segura do que com relação ao terror normal que nos cerca. É isso que esse gênero significa, em sua melhor forma: uma metáfora sobreposta às emoções reais que experimentamos.

A série está saindo em um momento político muito diferente do que existia quando você começou o trabalho, três anos atrás. Agora que vocês estão editando, como como isso afeta o processo?
Para mim, o momento é assim desde que a primeira pessoa escravizada foi trazida para cá. As pessoas estão mudando de empatia e isso tem a ver com a mudança de empatia dos criadores negros.
Mas é o o ovo ou a galinha? O que vemos muda porque a forma de olhar mudou? Ou a forma de olhar mudou porque o que vemos mudou? Acho que as duas coisas.

Qual é a sua posição sobre a segurança negra, agora?
A segurança dos negros sempre veio envolta em terror. Não preciso de muita coisa para sentir aquela ansiedade, porque ela está presente. Só uma minoria (dos americanos) não é parte do movimento agora, mas eles são competentes em nos desviar e garantir que não sintamos empatia e não nos unamos.
Isso também é parte do que “Lovecraft Country” trata. Como a família vai lidar com a vergonha e com a dor, e se unir para combater aquela coisa? E o que significa retomar o poder? O que e quem você pode ser, quando você retomar o poder e passar a controlá-lo?

The New York Times
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