'Arcanjo Renegado' mostra Marcello Melo Jr. como agente do Bope em meio a violência do Rio
Série foi gravada no Complexo da Maré e conta com policiais reais
Série foi gravada no Complexo da Maré e conta com policiais reais
Se de um lado parte da sociedade ainda proclama que “bandido bom é bandido morto”, do outro há um grupo ferrenho na ideia de que “todo policial é genocida”. É justamente essa complexidade de narrativas extremas que tenta discutir a série “Arcanjo Renegado”, que estreia nesta sexta-feira (7) na plataforma de streaming Globoplay.
Gravada no Complexo da Maré, a produção aborda os problemas da segurança no Rio de Janeiro a partir da história do sargento Mikhael (Marcello Melo Jr.), que comanda o grupamento Arcanjo, responsável por operações especiais do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais). “O Bope do Bope”, brinca o jornalista Ronaldo (Álamo Facó) no primeiro dos dez episódio da 1ª temporada.
O gatilho para essa trama será a morte de um colega de equipe, que também é cunhado de Mikhael. Segundo o diretor Heitor Dhalia, a partir daí o protagonista se envolve numa questão política e acaba dragado por esse sistema. A série se desenrola a partir das duas vertentes, uma trama policial e uma política, que se colidem num certo momento.
“É um debate muito complexo e que suscita muitas emoções, porque mexe diretamente com a vida das pessoas: segurança, bem-estar, estado de direito”, afirma Dhalia. “É realmente complexo viver em um país que tem essa estrutura política em ruínas, especialmente o Rio de Janeiro. Tem não sei quantas facções criminosas, 1.200 áreas conflagradas, e a série trata um pouco disso”.
O enredo faz o telespectador recordar filmes como “Tropa de Elite”, a partir da conduta, postura e linguagem dos policiais. Mas o diretor afirma ir além, graças ao criador da série José Junior, que é ativista e fundador da ONG AfroReggae: “alguém de dentro desse universo e que tem propriedade pra falar desse assunto de uma maneira muito verdadeira”, afirma Dhalia.
Segundo ele, a série mostra a armadilha do protagonista ser um pessoa dessa força policial, ser uma pessoa letal, mas ao mesmo tempo mostrando como ele é vítima do sistema político, que o tranformou no que ele é. “Cabe ao policial, que é dessa comunidade, que é dessa população pobre, ir lá pra matar ou morrer, a ordem é 'faça o que tem que fazer, porque eu não quero saber'.”
“A culpa é do sistema. Se ele não quer as coisas organizadas, elas não se organizarão”, avalia Marcello Melo Jr.. “É um poder muito maior do que aquele que veste a farda. O policial vai com seus princípios, mas as ordens não veem dele. Às vezes não é o cara da arma que aperta o gatilho. Isso eu falo com propriedade: Mikhael não tem aquele querer matar simplesmente por matar”.
E para contar essa história, a palavra de ordem, tanto de Junior quanto de Dhalia, foi o realismo. Por isso a escolha de gravar dentro do Complexo da Maré, com policiais de verdade e com 40 ex-traficantes regressos. O objetivo parece ter sido alcançado, já que muitas imagens feitas por moradores durante as gravações acabaram viralizando como se fossem de operações reais.
“Dois ou três dias depois de uma gravação, um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro foi morto, o Fernandinho do Dendê. E imagens dos bastidores das nossas gravações foram viralizadas como se fossem da operação. E toda hora aparecia uma cena nova, um ângulo novo. Todo mundo me deu parabéns pela ótima jogada de marketing, mas eu não soltei nenhum vídeo”, diz José Junior rindo.
O realismo chegou a tocar nos nervos da equipe. Em uma cena gravada na frente da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), uma atriz, que interpretava uma mãe durante um protesto após a morte do filho, conseguiu emocionar os figurantes a ponto de uma delas cair no choro, levando até mesmo membros da equipe às lágrimas, afirma Dhalia.
Érika Januza, que faz Sarah, irmã de Mikhael, diz que até estranhou um pouco: “Em todo trabalho a gente quer levar a realidade, mas nesse especificamente era a realidade do que você estava sentindo naquele momento, eu tinha até liberdade de falar ou não algo do texto de acordo com o que eu sentia. É desafiador pra gente que está tão acostumada a fazer o não real.”
Longe da ação, Sarah representa um outro lado do drama da violência, como filha, irmã e mulher de policial. “A minha personagem é muito drama, ela sofre do início ao fim, coitada. Mas fico feliz de contar a história dessas mulheres que perdem o marido em combate. Elas têm que ser forte dobrado, as vezes com filho pequeno, as vezes grávida... Essas perdas não têm hora”.
Toda dicotomia que a série pretende mostrar no embate entre a população de comunidade e os policiais, ambos estigmatizados, Marcello Melo Jr. diz ter sentido na pele ao aceitar o papel de Mikhael. Como negro, que cresceu em uma favela carioca, ele afirma que sempre viveu a realidade pelo lado do bandido, simplesmente por vir do mesmo universo.
“É uma loucura. Quando eu era criança, as informações que eu tinha sobre a polícia era de que era violenta. E, ao mesmo tempo, a comunidade é vista como violenta, agressiva. Então pra mim é a oportunidade de misturar os dois. De vir de uma comunidade e contar a história de um policial e unir as duas forças. Acho que a gente está num momento de juntar forças do bem”, afirma Melo.
Mas esse não foi o único desafio enfrentado pelo ator para fazer Mikhael. Ele conta que não foi fácil se emprestar a um personagem tão sério, taciturno, já que sua personalidade é mais alegre, divertida. Além disso, Marcello revela que odeia falar sobre política no dia a dia, e o que mais é abordado na série é justamente a política e como ela contribui para esses conflitos.
“Eu não conto a história da polícia, conto a história de um policial, que, como um médico, um professor tem suas dificuldades, seus monstros e, às vezes, alguma coisa que não concorda e o faz querer combater, tentar burlar o sistema. Não é o bandido, nem o cidadão, nem a polícia, é a política o problema”, afirma Melo.
Na busca do realismo, a presença de policiais nas gravações foi fundamental, segundo a equipe. Melo afirma que a todo momento, durante as gravações ou nas horas de descanso, ele observava a postura, o jeito de falar, as conversas desses policiais. “Quando a gente entrava no blindado era putaria, conversa, futebol. Aí entrava em ação e eles ficavam sério, mudavam completamente”.
Dhalia afirma que se surpreendeu e que chegou a debater com membros da equipe o porquê de os policiais serem tão bons atores: “a primeira leitura é que eles são policiais fazendo eles mesmo, mas se fosse assim a gente não precisava mais ter ator nenhum, era só chamar um advogado pra fazer um advogado. Por isso, acho que é uma questão de linguagem. O militarismo é uma performance”.
“O militarismo faz o cara performar autoridade, coragem, destemor, força, bravura. Tem aqueles hinos que eles cantam pra ter a coragem, senão você não vai. Todo mundo tem medo de levar um tiro. Todo mundo tem medo do outro”, completa o major Blaz, que atuou por mais de dez anos no Bope e fez parte da preparação dos atores para a série.
Segundo o policial, no entanto, o Bope é uma unidade com policiais felizes, sorridentes, que brincam e zoam entre eles. “Esse cara do Bope carrancudo, tenso o tempo todo, não existe. Ele fala sacanagem, putaria, fala de suas questões pessoais, como tudo mundo, mas tem aquela arrogância, a postura altiva, autoestima alta”, afirma ele, que conclui: “O capitão Nascimento não existe”.
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