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Celebridades
Descrição de chapéu The New York Times

Biografia de Anthony Bourdain faz relato sem verniz de uma vida turbulenta

Obra de Charles Leerhsen mostra relação do chef com prostituição e drogas

Anthony Bourdain no Pier 57, em Nova York, onde ele abriria um espaço em 2015

Anthony Bourdain Alex Welsh - 20.set.15/The New York Times

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Dwight Garner
The New York Times

Anthony Bourdain teria odiado que o verificador ortográfico mude seu sobrenome para Boursin, um queijo sem qualquer brilho ou credibilidade culinária.

É uma surpresa que o corretor automático não sugira o nome dele primeiro. Bourdain: ele é quente, ele é sexy e ele está morto, como disse a revista Rolling Stone sobre Jim Morrison, em uma capa de 1981 que se tornou famosa.

Desde que Bourdain se suicidou, na França em 2018, há um gotejar constante de livros, documentários, especiais de televisão e revistas sobre a vida e carreira do chefe de cozinha e apresentador de TV.

Nas mídias sociais, ele é onipresente, em forma de antigos vídeos nos quais explica como fazer um Negroni, ou detona o uso da expressão "da fazenda à mesa". Há muitas tatuagens pungentes de Bourdain tremulando pelo planeta.

Uma nova biografia, "Down and Out in Paradise: The Life of Anthony Bourdain", por Charles Leerhsen, está conquistando atenção. É um livro que mostra o lado barra pesada do biografado com mais detalhes do que qualquer coisa que já tenhamos lido sobre ele.

O autor fala das prostitutas, um monte de prostitutas, das aventuras de uma noite de duração e dos rumores sobre casos com outras personalidades do mundo da gastronomia

Fala também sobre o uso de anabolizantes, hormônio de crescimento humano e Viagra. Oferece detalhes exatos e perturbadores sobre o suicídio de Bourdain. Seu vício em heroína é relatado. Assim como a frieza com que ele frequentemente tratava muitas pessoas que o amaram e trabalharam com ele.

Um livro anterior, "Bourdain: The Definitive Oral Biography" (2021), compilado por Laurie Woolever, servia como uma espécie de produto oficial das indústrias Bourdain. Um tratamento digno, mas enfadonho.

Priorizava depoimentos de celebridades do mundo da gastronomia, televisão e jornalismo que pontificavam sobre o biografado e tentavam deslindar o que fazia com que aquela magnífica e erudita besta-fera pagã, com seu maxilar cinzelado, funcionasse, e o que o levava ao divã.

Já o livro de Leerhsen, por outro lado, mostra muita gente que tentou se juntar a Bourdain no divã, preferencialmente sem calças, e por isso oferece mais adrenalina e parece mais fiel à realidade.

A maioria dos seres humanos tem mais desejos do que oportunidades na vida. Aqueles que os deuses desejam destruir recebem desejo e oportunidade em igual medida.

"Down and Out in Paradise" me lembrou, de algumas maneiras, a biografia sensacionalista de Albert Goldman sobre Elvis Presley, em 1981. Leerhsen confia fortemente em fontes anônimas, por exemplo.

Mas seu objetivo não é desacreditar ou minimizar o valor do homem que lhe serve de tema. A admiração dele por Bourdain é quase sempre aparente. Não é fácil dizer se Bourdain teria gostado do livro. Mas de qualquer forma imagino que teria admirado a coragem do autor.

"Down and Out in Paradise" não é a coisa mais sutil que você já leu. Leerhsen foi editor executivo da revista Sports Illustrated e seus livros anteriores incluem biografias de Ty Cobb e Butch Cassidy. O livro dele sobre Bourdain tem cara de biografia de astro do rock dirigida ao mercado de massa.

Eu teria adorado, se tivesse 17 anos. O autor fala extensamente sobre a angústia de Bourdain, sua desconfiança instintiva quanto às autoridades, seu culto pessoal a heróis outsiders como Hunter Thompson, Iggy Pop e William Burroughs.

Meu eu atual, que prefere vinho a bebidas gasosas, gostaria que Leerhsen tivesse mais a dizer sobre coisas como: a) a elite e os mundos da comida popular antes e depois de Bourdain; b) a forma pela qual Bourdain caminhou em uma corda bamba moral entre as convenções do jornalismo de viagem e as da reportagem objetiva, o que é uma façanha considerável para um homem branco rico que usava jeans apertadíssimos; e c) a sensação de que ele esteve na vanguarda de um novo tipo de masculinidade americana, mais até do que muitos dos atores que a simbolizam. O que tínhamos nele era um gato de rua, e não um gato doméstico.

Mas não se pode ter tudo. Leerhsen sacrifica o peso em troca de velocidade.

Ele acompanha Bourdain desde sua infância suburbana em Nova Jersey –os pais dele tinham inclinações boêmias frustradas— até a Universidade Vassar, onde ele estudou para acompanhar a namorada que se tornaria sua primeira mulher. O estudo não o atraía, mas a cozinha sim, o lado pirata da culinária, e ele se formou no Culinary Institute of America, na época um lugar completamente atrelado à tradição.

Ele trabalhou em restaurantes em Provincetown, Massachusetts, e mais tarde em Nova York, notavelmente no ousado restaurante francês Les Halles, e lá ganhou suas primeiras cicatrizes de combate. Fumava quatro maços de cigarro por dia e sua capacidade de absorção de álcool e drogas era imensa.

Bourdain demorou a desabrochar. Publicou seu primeiro romance aos 39 anos. Estudou, sem nenhuma satisfação, com o editor Gordon Lish, antes de escrever o artigo que mudou sua vida.

"Não Coma Antes de Ler Este Artigo: Um Chefe de Cozinha de Nova York Revela Segredos do Ramo" saiu na revista The New Yorker em abril de 1999. O impacto do artigo, naqueles dias em que a internet ainda não dominava, é difícil de ser exagerado: no dia seguinte à publicação do texto, caminhões de reportagem das redes de TV estavam plantados diante do Les Halles.

O artigo deveria ter sido publicado no New York Press, um semanário alternativo, mas a publicação aceitou o texto e decidiu não veiculá-lo. O artigo na New Yorker, no qual Bourdain afiava os dentes discorrendo sobre as práticas descuidadas dos restaurantes, o conduziu diretamente ao best seller "Kitchen Confidential" e a tudo mais que se seguiu, particularmente programas de televisão cada vez mais bem produzidos.

O amadurecimento fez de Bourdain um homem mais digno de sua aparência; ele tinha o tipo de rosto que inspirava mulheres a estudá-lo com reverência quase talmúdica. Ele também amadureceu como apresentador; seus programas melhoraram, se tornaram mais ousados e mais complexos.

Bourdain teve um milhão de oportunidades de se vender e enriquecer muito. Mas não há conjuntos de facas ou uma cadeia de bistrôs de aeroporto portando seu nome.

"Depois que você visita o Camboja, vai passar o resto da vida com vontade de espancar Henry Kissinger até matá-lo", escreveu Bourdain em "A Cook's Tour: Global Adventures in Extreme Cuisines" (2002).

Depois de ler "Down and Out in Paradise", a vontade de qualquer leitor vai ser queimar o laptop e o celular de Bourdain. O livro revela que ele tinha um alerta no Google para informá-lo sobre qualquer menção ao seu nome. Recebia notificações sobre isso em tempo real, para alimentar o ego.

Também somos informados de que ele pesquisou centenas de vezes no Google o nome da atriz italiana Asia Argento —com quem ele teve um caso tórrido e confuso— nos três dias anteriores à sua morte, depois que ela o abalou ao aparecer em público com outro homem.

As mensagens de texto entre eles estão disponíveis no livro. "Você foi irresponsável com meu coração", escreveu Bourdain, antes de se enforcar. O último site que ele visitou foi um serviço de prostituição, escreve Leerhsen, embora aparentemente tenha morrido sozinho.

"Muita coisa precisa ir muito bem em sua vida antes que você se sinta tão miserável quanto Anthony Bourdain se sentia, perto dos 60 anos –ou seja, antes que você possa se colocar em uma posição na qual tenha tanto a perder", escreve Leerhsen. "No caso de Tony, foram precisas décadas para que ele atingisse uma altura da qual importasse cair".

Há uma velha piada em Hollywood de que o filme "Gandhi" fez sucesso na cidade porque Gandhi era tudo o que as pessoas de lá desejavam ser: magro, bronzeado e ético.

Bourdain —magro, bronzeado (ele era viciado em bronzeamento artificial) e quase sempre ético— está chegando perto da santidade laica. O livro não se limita a acender velas em devoção a ele, e também se dedica a macular um pouco sua imagem. Duvido que venha a ser a palavra final sobre o biografado.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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