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Celebridades
Descrição de chapéu The New York Times

Lea Michele, de 'Glee', comenta papel dos sonhos e quer mostrar que mudou

Alvo de críticas na web, atriz fala da carreira e celebra projeto na Broadway

Lea Michele Gioncarlo Valentine - 16.ago.22/The New York Times

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Julia Jacobs
Nova York
The New York Times

Há 15 anos, Lea Michele estava de coração partido em seu camarim, deprimida por causa de um sujeito qualquer durante a temporada do musical "Spring Awakening", quando o diretor do espetáculo da Broadway decidiu lhe oferecer um pequeno conselho.

O diretor, Michael Mayer, sugeriu que ela assistisse ao filme "Funny Girl – A Garota Genial", que, segundo ele, era sobre uma artista que aprende a não permitir que um homem a coloque para baixo.

"Ofereci o filme a ela para tentar reconfortá-la", disse Mayer em uma entrevista por telefone, no mês passado. "Ela tinha uma carreira excelente, estava fazendo o papel principal em um novo e importante musical, e ainda era jovem".

Michele assistiu ao filme naquela noite. Deslumbrada, ela o assistiu novamente na noite seguinte, e decidiu que um dia conquistaria o papel principal, o de Fanny Brice. Algumas semanas mais tarde, ela falou entusiasticamente sobre o filme e sua estrela, Barbra Streisand, em um jantar com um produtor de televisão, Ryan Murphy, que pouco depois criaria uma nova série, "Glee", concebida em torno de Michele.

E é nesse ponto que a história ganha um lado meta: na série, Michele interpreta a líder de um grupo de canto de sua escola de segundo grau, e mais tarde se torna uma atriz teatral batalhadora cujo primeiro grande papel no teatro é exatamente em uma remontagem de "Funny Girl" na Broadway, a primeira desde a estreia do espetáculo original em 1964.

O plano de Murphy para transferir a Fanny Brice de Michele da tela de TV para os palcos nunca se materializou. Mas na semana passada, em um caso que muita gente verá como exemplo de a vida imitando a arte, Michele estreou no papel de Brice, uma cantora e dançarina judia do começo do século 20, no August Wilson Theater.

Como as duas atrizes que desempenharam o papel este ano (primeiro Beanie Feldstein, e em seguida sua substituta Julie Benko), Michele deve batalhar para evitar a sombra de Streisand, que criou o papel original no teatro e no cinema.

Diferentemente das duas atrizes, Michele, 36, tem outra sombra a enfrentar: o seu passado. Há dois anos, ela enfrentou uma onda de críticas de ex-colegas que a acusaram publicamente de intimidação e de estrelismo. E ela vai assumir um papel em um espetáculo cujas maquinações e mudanças nos bastidores vêm sido uma das histórias mais suculentas da Broadway nos últimos meses, rendendo extensa cobertura e fofocas.

"Eu me sinto mais preparada do que nunca, tanto pessoal quanto profissionalmente", disse Michele em uma entrevista, três semanas antes de sua estreia.

Durante nossa conversa, ela estava em um camarim até recentemente ocupado pela atriz Jane Lynch, que encerrou sua passagem pelo espetáculo, no papel da mãe de Brice, mais cedo do que o planejado, o que garantiu que as duas integrantes do elenco de "Glee" não subiriam juntas ao palco.

As reclamações quanto a Michele a levaram a um "intenso momento de reflexão" sobre sua conduta no trabalho, disse a atriz –e isso, em sua opinião, a preparou para fazer parte de, e liderar, uma companhia teatral na Broadway pela primeira vez desde que deixou "Spring Awakening", em 2008.

"Agora, entendo realmente a importância e o valor de ser uma líder", disse Michele. "Quer dizer que não basta fazer um bom trabalho quando a câmera está rodando; é preciso fazer o mesmo quando não está. E isso nem sempre foi a coisa mais importante para mim".

Para Michele, que se afastou temporariamente do trabalho após o nascimento de seu filho, Ever, em 2020, a reação explosiva da Internet à sua seleção para o elenco de "Funny Girl" talvez não tenha sido a narrativa de retorno à Broadway que ela havia imaginado.

Antes de a notícia ser anunciada, Feldstein, cujo desempenho recebeu críticas em geral piores do que as previstas, anunciou no Instagram, em julho, que deixaria o elenco dois meses antes do previsto, acrescentando que a produção havia "decidido levar o espetáculo numa direção diferente". O anúncio alimentou a especulação de que a saída de Feldstein tivesse algo a ver com Michele, que foi informada mais ou menos naquele momento de que assumiria o papel.

A rejeição a Michele ressurgiu online, e houve quem questionasse se o papel deveria ter sido oferecido a ela.

Voltando a junho de 2020: Depois que Michele tuitou uma mensagem com o hashtag "Black Lives Matter", Samantha Marie Ware, uma atriz negra que trabalhou em "Glee", disse que a colega havia sido responsável por "microagressões traumáticas" contra ela durante a série, que Michele havia ameaçado fazer com que ela fosse demitida, e que tinha feito um comentário humilhante sobre Ware diante de companheiros de elenco.

Seguiu-se um dilúvio de críticas, inclusive de antigos integrantes do elenco de "Glee", que descreveram Michele como excludente e desdenhosa para com os colegas. A HelloFresh, uma empresa que produz kits de refeição, encerrou sua parceria comercial com a atriz, afirmando que "não tolera racismo nem discriminação de qualquer tipo".

Outra colega de Michele em "Glee", Heather Morris, tuitou, na época, que tinha sido muito desagradável trabalhar com ela, escrevendo que "já que Lea tratou os outros com desrespeito por tanto tempo quanto ela fez, acho justo que ela seja chamada a prestar contas". (Morris não respondeu a um pedido de entrevista).

Michele pediu desculpas em 2020 por seu comportamento no passado.

Na entrevista do mês passado, ela se recusou a abordar aspectos específicos do relato de Ware, dizendo que "não sente necessidade de lidar com essas coisas" por meio da mídia. Ware se recusou a comentar, mas logo depois que a escolha de Michele para "Funny Girl" foi anunciada, ela tuitou uma mensagem com o texto "a Broadway mantém a brancura". O relato dela sobre Michele, e seus tuites, agora têm acesso restrito.

Michele hoje reconhece que seu estilo de trabalho é intenso, às vezes intenso demais. "Tenho um lado agressivo. Trabalho muito. Não deixo espaço para erros", ela disse. "Esse nível de perfeccionismo, ou essa pressão do perfeccionismo, me levou a ter muitos pontos cegos".

Ela atribui essa caraterística psicológica ao seu período como atriz infantil na Broadway, durante o qual, disse, a expectativa de atuar em um nível consistentemente alto muitas vezes fazia dela "um quase robô".

A carreira de Michele como atriz começou inesperadamente, quando ela tinha oito anos e morava em Tenafly, Nova Jersey, com seu pai (dono de uma "delicatessen" judaica) e sua mãe (uma enfermeira católica italiana). Michele conta que alguém pediu que sua mãe levasse a filha de uma amiga, cujo pai acabava de ter um ataque cardíaco, a uma audição para a produção de "Les Misérables" na Broadway. Michele insistiu em ir junto, e acabou conquistando o duplo papel de Cosette e Éponine em suas versões infantis. Faminta por novas oportunidades, Michele foi selecionada aos nove anos para o elenco do novo musical "Ragtime".

Aos 14 anos, Michele conheceu Mayer quando conseguiu o papel de Wendla em uma oficina de preparação para "Spring Awakening". O papel, o de uma adolescente que explorava seus desejos sexuais sob as restrições de uma casa alemã do século 19, não deixou dúvidas sobre sua dedicação ao teatro. Em uma das cenas, seu colega de elenco, Jonathan Groff, a surrava com uma vara e, um pouco mais tarde, ela foi convidada para um papel que envolvia mostrar os seios e simular sexo no palco.

Groff, que formou uma ligação estreita com Michele durante a temporada da peça, se lembra de ela ficar chateada com as gargalhadas de desconforto que a cena da surra provocava no público. "Isso realmente acabava com ela", ele disse. "Ela questionava se não estávamos fazendo bem a cena, porque as pessoas estavam rindo!"

Groff foi a pessoa que a convidou para jantar com Murphy, preparando o terreno para o papel de Michele em "Glee". Aos 22 anos, Michele ganhou fama no mundo todo por sua interpretação de Rachel Berry, uma neurótica e perfeccionista integrante do clube de música da escola, cujo segundo nome, Barbra, é referência a uma certa diva nascida em Brooklyn.

Quando Berry conquista o papel em "Funny Girl", na série, sua afinidade para com o musical já estava bem estabelecida; ela já havia cantado "Don't Rain on My Parade" e "My Man", uma canção adicionada à trilha para a versão cinematográfica do musical, em episódios da série. Na quinta temporada, Berry interpreta "I'm the Greatest Star" em um palco da Broadway, com Lynch assistindo da plateia.

Seria perdoável confundir o que exatamente é parte da história de Michele com aquilo que acontece na linha narrativa de Berry. "As coisas se misturaram um pouco", disse a atriz.

Em um momento de perfeccionismo digno de Rachel Berry, ela admitiu que, durante uma turnê de shows do elenco de "Glee", ela pediu que "Don't Rain on My Parade" fosse tirada do repertório por ter cometido um erro ao cantar a canção ao vivo.

Nos bastidores, disse Michele, ela estava recebendo uma "educação rápida quanto ao vício", durante seu namoro com Cory Monteith, um colega de elenco que enfrentava problemas de abuso de substâncias há muito tempo. Monteith morreu em 2013 por conta de uma combinação de heroína e álcool, o que devastou Michele e outros membros do elenco.

Pouco tempo depois, Michele chegou perto de conquistar o papel dos seus sonhos, porque Murphy conseguiu os direitos para uma remontagem de "Funny Girl" na Broadway. Era um momento difícil, disse Michele, e ela se sentia insegura quanto ao plano porque tinha acabado de cantar muitas das canções do repertório na TV. "Eu não senti que houvesse algo novo que eu pudesse trazer", disse.

Mas as coisas mudaram, no plano emocional, de lá para cá, desde que Michele —como Brice no segundo ato do musical—, se casou e teve um filho, reordenando suas prioridades.

Os amigos dela começaram a perceber mudanças. Groff se lembra de que no casamento de Michele com o empresário Zandy Reich, em 2019, Murphy, que consagrou a união, contou uma história sobre seu primeiro jantar com os dois como casal. De acordo com Groff, Murphy disse, em tom brincalhão, que "essa foi a primeira vez que jantei com Lea e o tema principal da conversa não era ela, e o que ela queria fazer a seguir em sua carreira artística". (Um representante de Murphy informou que ele não estava disponível para comentar a história.)

Ever, o filho de Michele, nasceu no ano seguinte, após meses de complicações na gravidez. Quando a equipe por trás da produção londrina de "Funny Girl" começou a selecionar o elenco para transferir o musical à Broadway, Mayer disse que, embora Michele estivesse no topo da lista para o papel de Brice, ele sentiu que a atriz não estaria pronta para voltar ao trabalho.

Depois da seleção de Feldstein, Mayer teve uma conversa com Michele para explicar a decisão. "Eu disse que sabia que aquilo provavelmente não era o que ela queria ouvir, mas que tinha sido o que decidimos", ele se recorda de ter dito. Mas no fim da conversa, ele acrescentou que "eu adoraria fazer 'Funny Girl' com você um dia desses".

Michele disse que ela não estava decidida a voltar à Broadway até novembro de 2021, quando se apresentou em um concerto especial que reuniu por uma noite o elenco de "Spring Awakening". Por volta daquela época, Michele disse que teve outra conversa com Mayer, na qual afirmou que, se Feldstein decidisse deixar o papel e eles quisessem uma substituta, seria uma "honra" para ela participar.

Depois que Feldstein primeiro anunciou sua intenção de sair, em junho, a engrenagem que conduziria Michele ao papel começou a funcionar, disse Mayer. Ele acrescentou que tinha adorado o desempenho de Feldstein e que a apoia 100%. Perguntado por que Feldstein tinha decidido sair antes do planejado, ele respondeu não saber ao certo.

"Não conversei com ela sobre isso", disse Mayer. "Acho que foi difícil para ela quando soube que ia sair, e que outra pessoa assumiria o papel". (Um representante de Feldstein não respondeu a pedidos de comentários.)

Mayer disse que a negociação com Michele foi relativamente rápida porque ela e Feldstein têm o mesmo agente, que já conhecia os detalhes do espetáculo. No final de julho, Michele já estava na sala de ensaios. Benko assumiu o papel de Brice no mês de agosto, com a garantia de que ela estrelaria um espetáculo por semana depois da estreia de Michele.

Em um dos primeiros dias de ensaio de Michele com o elenco completo, ela cantou "Don't Rain on My Parade" no palco, e uma integrante do grupo, Leslie Blake Walker, disse que se lembrava de tê-la visto cantar a canção em "Glee" —a primeira vez Walker ouviu falar de "Funny Girl".

Ao ensaiar "I’m the Greatest Star", um mês atrás, Michele interpretou Brice ressaltando sua energia febril, diferentemente das duas predecessoras. Comédia foi a maneira que ela encontrou de levar as coisas ao extremo: agarrar Jared Grimes pela blusa em uma cena em que está tentando convencê-lo de seu talento, ou galgar o piano e, por sugestão de Mayer, pisar sobre algumas das teclas.

A estrutura do espetáculo terá algumas mudanças, incluindo um novo interlúdio de uma canção de Brice, "I'd Rather Be Blue Over You", que Streisand canta no filme.

Michele, como suas antecessoras, tentou aliviar a pressão da comparação, dizendo que "jamais serei tão boa quanto Barbra Streisand". Qualquer que seja o desempenho que ela venha a apresentar, a atriz não será elegível para um Tony; apenas a atriz que originou o papel, Feldstein, pode ser considerada para o prêmio.

É difícil subestimar a pressão sobre Michele para que ela salve essa remontagem. Mayer disse que vê a substituição como uma "segunda chance" para "Funny Girl", cujas vendas de ingressos estavam em declínio, caindo para uma média semanal bruta de cerca de US$ 760 mil (R$ 3,9 mi) no último mês de Feldstein, ante US$ $1,2 milhão (R$ 6,2 mi) nos dois primeiros, de acordo com dados da Broadway League. Os preços agora dispararam para a estreia de Michele: o ingresso mais caro em sua primeira noite no papel custa mais de US$ 2,6 mil (R$ 13,5 mil).

Apesar da força evidente de seu estrelato, Michele parece consciente de que precisa evitar se comportar como uma diva. "Todo mundo aqui se sacrificou muito, e eu só preciso chegar, estar preparada e fazer um bom trabalho, e respeitar o fato de que esse é o espaço deles", disse a atriz.

Um obstáculo inesperado, no processo, foi que ela teve de aprender a sapatear, da estaca zero, praticando com um vídeo de sapateado que uma das coreógrafas do espetáculo, Ayodele Casel, lhe enviou. (Michele disse que, depois do primeiro ensaio de sapateado, chorou no banheiro, questionando se realmente conseguiria fazer o papel, antes que os ensaios enfim começassem a fazer efeito.)

Ainda assim, Michele admite que está apenas aprendendo a ser vulnerável em público. O ódio que existe por ela online beira o absurdo, e ela teme que, se responder às críticas —ou a um boato bizarro de que é analfabeta– isso só vai alimentar a fogueira.

"Eu estava no estúdio todos os dias, em ‘Glee’; sabia minhas falas todos os dias", ela disse. "E aí surge um rumor online de que não sei ler ou escrever? É triste. É realmente triste. Muitas vezes, acho que muito disso não aconteceria se eu fosse homem".

No momento, Michele disse que seu foco é no que está diante dela: dominar o papel, e dessa vez fazê-lo como cônjuge e mãe, e não como uma ex-capitã de clube escolar de canto faminta pela fama. Rachel Berry talvez tivesse um chilique caso seu trabalho não fosse elegível para um Tony Award, mas Michele insiste, agora, em que não está incomodada.

"Você talvez ache que aquilo que vou dizer é a maior mentira que ouviu em nossa conversa toda", disse Michele, "mas [o Tony] realmente não me importa no momento. Só o que importa é conseguir interpretar esse papel".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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