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Celebridades
Descrição de chapéu The New York Times

Selma Blair expõe sua vida com esclerose múltipla e diz que quer atuar

Atriz estrela documentário sobre sua doença para ajudar e informar

Selma Blair Magdalena Wosinska/ NYT

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The New York Times

Em nossa primeira entrevista Selma Blair queria falar só por meia hora. Ela não confiava em que seu corpo e mente cooperassem por mais tempo —tinha medo de começar a perder o foco e de enfrentar dificuldades para falar, em uma entrevista mais longa. "É mais responsável conversarmos por momentos menores, porque assim garantimos que eles serão momentos mais claros", ela disse.

Para Blair, não existem dias livres dos efeitos da esclerose múltipla, a doença imunológica que ela descobriu ter em 2018, mas que acredita tenha começado a atacar o seu sistema nervoso central muitos anos antes.

Aquela sexta-feira específica de setembro tinha começado de um jeito especialmente difícil. Ela contou ter acordado em sua casa em Los Angeles se sentindo "muito mal", mas que tinha descoberto que conversar com alguém ajuda a aliviar o desconforto. Blair disse que tinha tido boas conversas mais cedo no dia, e que as expectativas dela para nossa entrevista eram igualmente boas.

Por isso, disse Blair com uma risada satisfeita, caso ela precisasse fazer uma pausa durante a conversa, "vai ser só porque você está me entediando".

Uma desinibição sem paralelos sempre definiu os melhores trabalhos de Blair. Ela tem 49 anos, e seu currículo inclui trabalhos seminais de drama adolescente ("Segundas Intenções"), comédia ("Legalmente Loira"), e a adaptação de quadrinhos ("Hellboy").

A mesma franqueza abrupta persiste em todas as suas interações, quer roteirizadas, quer espontâneas, diante das câmeras ou longe delas, mesmo quando ela está contando sobre uma entrevista em "The Tonight Show" em que estava usando um top de alcinhas que, sem querer, vestiu de lado. É uma história que ela conta com orgulho, cinco minutos depois de começarmos nossa conversa por vídeo, enquanto seus dedos desarranjam ferozmente seus cabelos curtos e tingidos de loiro. (Para explicar essa opção de estilo, ela adota uma voz metálica, ao modo Ethel Merman, e canta "eu quero ser uma shiksa" [termo de gíria iídiche para mulheres não judias].)

Mas a franqueza de Blair veio a significar ainda mais nos três anos que se passaram desde que ela anunciou publicamente que tinha esclerose múltipla. Agora, quer seja ao postar entradas de seu diário pessoal na mídia social, quer quando ela comparece a eventos de tapete vermelho, ela compreende que representa todo um grupo de pessoas e tem uma oportunidade de educar uma audiência mais ampla sobre o que ela e outros portadores de esclerose múltipla estão enfrentando.

É uma filosofia de abertura completa que a atriz está levando adiante de maneira ainda mais radical ao servir como tema a um documentário, "Introducing, Selma Blair". O novo filme, dirigido por Rachel Fleit, é um retrato sem rodeios da vida de Blair com a esclerose múltipla, e do transplante de células-tronco que ela sofreu para tratar da doença em 2019. (O documentário foi lançado no cinema americano no último dia 8 e no serviço de streaming Discovery+ em 21 de outubro.)

Como explica Blair, ela tem a esperança de que o filme venha a ser importante para espectadores que se sentem inseguros e que enfrentam desafios, quer sejam pacientes de doenças crônicas, quer não.

"Essa é minha condição humana", ela disse, "e cada um tem a sua, mas acredito que estejamos unidos em nosso sentimento de solidão ou medo, quando temos grandes mudanças em nossas vidas. Não foi um projeto movido pela vaidade, de jeito algum, e olha que sou muito capaz de fazer coisas por vaidade".

Para Blair, o documentário é só mais uma parte de um esforço mais amplo para se compreender –e determinar que proporção de sua identidade vem sendo determinada por sua doença, e o que restará ou mudará agora que ela está recebendo tratamento para o problema.

"Se isso tivesse acontecido quando eu tinha 20 e poucos anos, estava tentando começar uma carreira, guardar algum dinheiro, eu teria ficado completamente abatida", ela disse. "Mas agora tenho idade suficiente. Estou descobrindo toda uma personalidade nova em mim, e não tenho vergonha disso".

Pensando em sua infância e adolescência, em uma comunidade suburbana do Michigan, Blair se descreveu quando menina, aos sete anos de idade, carregando pela casa uma cópia de "Physicians’ Desk Reference", o manual de informações sobre remédios vendidos sob receita nos Estados Unidos, sempre preocupada por sentir dores, cansaço e mudanças de humor imprevisíveis.

Essas dificuldades persistiram quando ela chegou à idade adulta. A dor ficou pior, especialmente depois do nascimento de seu filho, Arthur, em 2011; ela teve problemas de visão e começou a sentir contrações musculares involuntárias no pescoço.

Até receber seu diagnóstico, disse Blair, ela não conseguia compreender por que seus sintomas variavam de ambiente a ambiente. "Em minha casa, consigo caminhar melhor, mas do lado de fora é como tentar andar na areia", ela disse. "Sob certas condições de luz, minha fala se torna intermitente, embora eu não tenha problemas na laringe". "Jamais me ocorreu que podia acontecer um congestionamento de trânsito em meu cérebro", ela disse.

Anunciar seu diagnóstico atraiu atenção para Blair, e também resultou em que ela fosse apresentada a Fleit. As duas chegaram a um acordo para começar a filmar o documentário, poucos dias antes da viagem de Blair a Chicago para sua cirurgia de transplante de células-tronco.

Fleit disse que Blair não teve controle sobre a edição do filme, acrescentando que a empreitada só teria chance de sucesso se a atriz estivesse "disposta a mostrar ao mundo o que realmente estava acontecendo –uma intimidade e honestidade brutal, que é raro ver, e ela se mostrou completamente disposta a fazê-lo".

Fleit, que sofre de alopecia universal, uma doença imunológica que leva à perda dos cabelos, disse que sentiu uma conexão especial com Blair, ao longo das gravações.

"Ser uma mulher careca em nosso mundo me ofereceu um acesso único a certas formas de dor emocional", disse Fleit. "Isso é algo que já não me assusta, e me sinto especialmente qualificada para definir um espaço como esse com relação a outra pessoa que esteja passando por uma experiência semelhante".

Mas nem todo mundo na vida de Blair se sentiu imediatamente confortável com sua decisão de fazer o filme e realizar o transplante de células-tronco. Sarah Michelle Gellar, colega de elenco de Blair em "Segundas Intenções" e uma de suas mais antigas amigas, disse que o tratamento a assustou, por vir acompanhado de um regime intensivo de quimioterapia.

"Minha sensação foi a de que aquilo era um risco grande demais", disse Gellar. "E a atitude dela foi de que, sim, por enquanto estou administrando a doença, mas dentro de 10 anos pode ser que não esteja, e já não serei candidata a esse tipo de tratamento. É agora ou nunca. E ‘agora ou nunca’ é uma boa definição de Selma".

Selma Blair (esq.) e Sarah Michelle Gellar se beijam durante a entrega do prêmio MTV Movie Awards - Rose Prouser - 03.jun.2000/Reuters

Gellar também tinha dúvidas quanto ao projeto do filme –"eu me preocupo demais com a privacidade, e não gosto nem de dizer a alguém que estou indo ao supermercado", ela disse. Mas compreendeu a posição de Blair. Ela achava que fazer o filme era importante por causa de seu filho.

Gellar recorda que "ela costumava dizer que, se não sobrevivesse, Arthur teria todo um diário em vídeo sobre o que ela enfrentou. Ele não teria de ficar imaginando se sua mãe desistiu da luta. Saberia que ela batalhou o máximo que pôde para ficar com ele".

Para Parker Posey, amiga e colega de Blair há quase 20 anos, a decisão de fazer o documentário é uma forma tão legítima de expressão quanto qualquer outra empreitada artística.

"Essa é a única coisa que temos –a vida de alguém como ator depende inteiramente do material que temos, das histórias que temos", disse Posey. "Vou conseguiu um papel que vá me dar algum significado, algo que me permita escapar da mesquinharia da maior parte das formas de entretenimento?"

Ela acrescentou que "qualquer pessoa que consiga encontrar propósito em criar aquilo que supostamente deve criar e em viver sua vida com coragem estará fazendo arte. Esse é o triunfo".

Blair, de sua parte, disse que quando as gravações do documentário começaram, "acho que nem percebi. Na verdade, não havia instruções da diretora, o que eu vejo como algo muito positivo". Ela acrescentou que "eu acho que nem percebi que um filme seria lançado e eu seria o tema. Não é algo que eu tenha processado".

Com nossa meia hora de conversa chegando ao fim, nos despedimos e eu disse a Blair que estava ansioso por voltar a conversar com ela dentro de alguns dias. Em uma voz comicamente etérea, ela respondeu: "Se Deus quiser e eu estiver viva".

Nossa conversa seguinte, marcada para a segunda-feira, teve de ser adiada quando Blair caiu de um cavalo, em um passeio no final de semana. Ela me contou em uma conversa subsequente –desta vez pelo telefone, porque falar por vídeo tornava mais difícil manter a concentração—, que tinha perdido o equilíbrio e distendido o polegar, mas fora isso estava tudo bem.

Blair estava se sentindo um pouco embaraçada com a maneira pela qual tinha se comportado em nossa primeira entrevista, usando seu senso de humor, admitidamente absurdo, para superar a ansiedade. "Eu fico muito assustada porque, até mesmo dentro de minha cabeça, ainda existe um estigma quanto a não conseguir fazer a coisa funcionar, não conseguir fazer que a conexão entre mente e corpo funcione como costumava", ela disse. "Eu recorro ao humor quando sinto que estou escorregando".

Ela também estava incomodada com uma declaração de alguém em sua conta do Instagram; a pessoa expressou apoio pelo documentário, mas disse, de acordo com a descrição de Blair, que "eu preferiria que uma pessoa comum, não uma celebridade, tivesse feito o filme, porque não é a mesma coisa". "Eu sou uma pessoa comum", disse Blair enfaticamente.

Cynthia Zagieboylo, presidente da Sociedade Nacional de Esclerose Múltipla dos Estados Unidos, disse que a decisão de Blair de revelar suas experiências seria benéfica para outras pessoas que têm a doença, e para aquelas que desejam saber mais a respeito.

"Não existe uma maneira certa de agir em meio a uma situação como essa", disse Zagieboylo. "Não existem duas histórias de esclerose múltipla iguais, e a expressão das pessoas a respeito da doença é muito pessoal".

Quando alguém como Blair fala abertamente de sua doença, disse Zagieboylo, "outras pessoas podem se sentir menos solitárias diante dos desafios da esclerose múltipla. Pessoas que sofrem potenciais sintomas talvez consigam reconhecer alguma coisa. Isso poderia levar a um diagnóstico precoce de esclerose múltipla, o que significa que a pessoa receberia tratamento mais rápido, com resultados superiores".

Ela acrescentou que "ao compartilhar sua jornada com o mundo de maneira realmente autêntica, o que Blair faz não tem qualquer lado negativo".

Blair disse ter sido informada de que sua esclerose múltipla está em remissão, o que, segundo ela, significa que "não existe um percurso para que a doença piore, e isso é excelente. Tenho espaço para me reposicionar". Não havia um prazo específico de validade para os efeitos positivos de seu transplante de células-tronco, mas, como ela disse em seu estilo característico, "pode ser que eu seja atropelada por um ônibus antes disso".

Um dos estranhos benefícios desse período de relativa calma é a oportunidade de descobrir se comportamentos passados que ela considerava como componentes fundamentais de seu humor e personalidade –os rompantes, a impulsividade– eram na verdade manifestações da doença.

Blair descreveu uma conversa com uma neurologista que perguntou se ela tomava remédios para a chamada "incontinência afetiva", uma condição que pode resultar em rompantes incontroláveis de riso, choro ou raiva.

"Não, eu simplesmente sou assim. Do que você está falando?", Blair recorda ter perguntado. "E ela respondeu que, na verdade, eu talvez não fosse assim. Era algo que jamais tinha me ocorrido".

Blair disse que "eu não sei se um dia vou conseguir reparar os danos neurológicos que sofri. Sei que posso encontrar percursos neurais diferentes, mas minhas cicatrizes são antigas".

Ela continua a ajudar a criar Arthur, cuja guarda ela divide com o estilista Jason Bleick, pai do menino e seu antigo namorado. Mas ela disse que o filho não conseguiu assistir ao documentário inteiro.

"Ele começou a se sentir desconfortável, depois dos 20 minutos", disse Blair. "Estava preocupado por as pessoas me verem daquele jeito e falarem mal de mim, e talvez não quererem me contratar para trabalhos".

Blair declarou que tinha seriamente a intenção de continuar trabalhando como atriz e que, se existe uma percepção de que ela se afastou do cinema, não é porque ela deixou de procurar papéis.

"Os papéis que me oferecem desde o diagnóstico são de mulher velha, mulher na cadeira de rodas, pessoa que tropeça e bate a cabeça na parede", disse Blair. "Pode ser que eu seja tudo isso, mas também continuo a ser tudo que era antes, e não deveria ser relegada a isso".

Mas agora que ela se mostrou ao mundo da maneira mais honesta que pode, Blair espera que seu esforço lembre os outros, e reforce nela mesma, a ideia de que existe valor nessa forma de transparência.

"Isso pode fazer diferença para as pessoas", ela disse. "E não quero dizer de um jeito espiritual ou de autoajuda. Estou falando realmente de algo mais, porque você nunca sabe o que as pessoas têm dentro delas, e pode ser um alívio descobrir que mesmo pessoas adoráveis como eu" –ela não consegue reprimir uma última risada irônica– "às vezes são prejudicadas por seus corpos e cérebros. É a mensagem de consolo que eu gostaria de transmitir".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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