Celebridades

Martin Freeman afirma que criar filhos o deixava com vontade de 'socar a parede'

'Você sente estar em uma pequena prisão e que está enlouquecendo', diz ator

O ator Martin Freeman em Pasadena, Califórnia

O ator Martin Freeman em Pasadena, Califórnia ORG XMIT: XNYT77 Nathaniel Wood/The New York Times

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Alexis Soloski
Londres

"Entre pessoas bem educadas, um tantinho esquerdistas ou progressistas, você não pode dizer que gostaria de atirar seus filhos da janela”, diz o ator Martin Freeman, 48. Isso foi em uma sexta-feira soturna, no final de 2019. Horas mais tarde, Freeman pegaria seus filhos, que então tinham 11 e 13 anos, para um final de semana “em que provavelmente vamos só comer e jogar bola, coisas tediosas e normais”.

Mas, naquele momento, ele estava acomodado em um sofá macio, em uma sala particular de um hotel elegante em um canto luxuoso do bairro londrino do Soho. Entre bocados de linguado, ele me contou que criar filhos, especialmente quando eles eram pequenos, muitas vezes o deixava com vontade de socar a parede. "É muito difícil”, ele disse. "Você sente estar em uma pequena prisão, na verdade, e que está enlouquecendo".

O ator de "Fargo", "Sherlock" e de filmes de Peter Jackson sobre os hobbits, aplicou essa loucura a “Breeders”, uma série de humor muito sombria que ele ajudou a criar e estrela, e acaba de estrear pela FX. Ele interpreta Paul, um homem de Londres casado com Ally (Daisy Haggard), e abençoado com dois filhos, Luke, 7, e Ava, 4. "Eu morreria por essas crianças", Paul diz à mulher no episódio piloto. "Mas muitas vezes também gostaria de matá-las”. “É um dilema, não é?”, ela responde. “Tentar decidir com que edredom sufocá-los”.

“Breeders” se une a recentes séries de humor anglófonas como “Catastrophe”, “Motherland”, “Workin’ Moms” e “The Letdown” ao tomar por foco os esforços frenéticos dos pais e mães modernos para cuidar dos filhos. Disparando a raiva que ele em geral mantém engatilhada, e permitindo que ela exploda.

Para os entusiastas de Freeman, isso pode parecer incômodo. O que um bom sujeito como ele está fazendo em um papel assim raivoso? Mas Freeman não é tão bacana. E sabe disso. "Sou um sujeito zangado”, ele diz, com franqueza típica. “E meio pretensioso”.

Os personagens que ele interpreta muitas vezes compartilham desse traço, mesmos os aparentemente benignos, como Tim, na versão britânica de “The Office”, ou John Watson, em “Sherlock”, que enfrenta problemas por causa do estresse pós-traumático –aliás, questionado se pretendia fazer novos episódios de “Sherlock”, sua resposta foi: “Isso ainda passa?”.

Basta levantar o capuz amarfanhado e é fácil perceber que os caras bacanas de Freeman não são assim tão bacanas. “As pessoas gostam de me ver como seu melhor amigo”, ele disse. “E não sou, mesmo. Não sou o melhor amigo delas. Isso sempre causou choque”.

O que sugere que seu personagem em “Breeders” é menos um acidente de percurso do que um alter ego. Questionado sobre o que o distingue de Paul, Freeman parou para pensar. “Creio que ele seja menos [palavrão] do que eu”, ele disse, usando uma obscenidade muito inglesa. Freeman, que usava botas de cano curto, jeans com a barra dobrada e um “chore coat” índigo, disse também que se vestia melhor do que Paul.

No almoço, Freeman alternava tiradas raivosas ocasionais com autoconsciência aguda. Falava com muito mais franqueza do que os atores costumam, com inteligência, humor e piadas ocasionais tão chocantes que me faziam rir histericamente, como descobri ouvindo a gravação da conversa mais tarde.

“Breeders” surgiu por causa de um sonho –literalmente um sonho, mas que lembrava demais a vida real. No sonho, os filhos dele estavam fazendo uma terrível bagunça, e Freeman subia as escadas para acalmá-los, dizendo a si mesmo que não devia gritar com as crianças, que isso não ajudaria e que só o faria se sentir pior. E aí ele gritava com elas mesmo assim.

Na manhã seguinte, disse à sua então parceria e coestrela em “Sherlock”, a atriz Amanda Abbington (eles se separaram em 2016), que imaginava que a situação serviria para uma comédia de humor muito sombrio. Ele tinha assistido a outras séries sobre a criação de filhos, como “Outnumbered”, da BBC. E ao assisti-las, me disse, sempre ficava imaginando por que nenhum dos genitores “estava ameaçando quebrar o nariz de alguém”.

“Porque se você é sempre, sempre, sempre desobedecido, alguém termina ameaçando jogar alguém mais na parede”, ele disse. “A vida real é assim”. Mas será, mesmo? Eu e muitos outros seres humanos bem intencionados talvez não concordemos. Freeman sabe a impressão que causa. “Nada disso vai parecer bacana, no papel”, ele disse. “Minhas entrevistas são sempre assim”.

Sejamos claros: Freeman gostaria de explicar que não, não aprova abusos contra crianças, de qualquer ordem. Jamais bateu nos filhos; e não acha que alguém deva bater em crianças, qualquer que seja a circunstância. Janelas? Paredes? Nada de atirar alguém por elas. Quando percebeu que estava gritando demais com as pessoas que mais amava no mundo, ele fez terapia, e isso ajudou.

Mas o ponto é que o ator desejava que “Breeders” refletisse sua frustração paterna autêntica, e não uma versão televisiva disso. Falando por telefone, Simon Blackwell, o produtor executivo da série (e outro de seus criadores, com Chris Addison), descreveu as reuniões iniciais de criação como “uma espécie de terapia de grupo para homens”, com ênfase nas falhas de que os participantes compartilhavam na sua função de pais, e na distância entre aquilo que eles desejavam ser, como pais, e aquilo que de fato eram.

Todos os redatores do programa têm filhos. A série, como disse Freeman em uma fala temperada por palavrões, “tem de mostrar a verdade do que é ser pai, o que é amar a tal ponto e ficar tão zangado e tão cansado”.

A alteração que ele mais pedia nos roteiros era para que a cena fosse menos engraçada. E os roteiristas atendiam, sabendo que o charme despenteado do ator abrandaria um personagem nem tão brando, gerando uma empatia que Paul talvez não mereça.

“Não sou um bom sujeito”, Paul diz no primeiro episódio. “Passei mais de 30 anos convencido de que era. Mas não sou. Sou escroto”. Foi algo que a paternidade ensinou a Paul. E também ensinou a Freeman.
Ainda assim, aquilo que o ator descreve, com franqueza –talvez até excessiva– como falhas pessoais, seus colegas definem como subproduto de uma inteligência feroz e de uma dedicação à sua arte que às vezes causam uma impressão de impaciência.

Haggard, a companheira de elenco de Freeman em “Breeders”, que levava sua bomba de amamentação ao estúdio para as gravações, o descreve como rigorosamente honesto. “Você vai bem fundo, não fica flutuando na superfície e sendo cortês sobre tudo que acontece”, ela disse. O diretor e roteirista Steven Moffat, um dos criadores de “Sherlock”, o definiu como “aguçado” e “muito decidido”, acrescentando que “ninguém imagina que possa tirar vantagem dele”.

“Eu acho que ele às vezes se irrita por ser escalado sempre para papéis de Cara Normal”, disse Moffat. “Porque ele não acha que seja um cara assim tão normal, e tem razão”. É exatamente a tensão entre sua aparência amena e sorridente e a suspeita de algo muito mais volátil por sob a superfície que dá forma aos seus melhores trabalhos. “Martin é perfeito para interpretar o cara normal com subcorrentes escaldantes”, disse Moffat.

Foi por isso que Noah Hawley o escalou para o papel de Lester Nygaard, o sujeito insípido tornado assassino que encabeça a primeira temporada de “Fargo”. "Aquela reserva de raiva é interessante, na tela”, disse Hawley, falando por telefone. “Você fica à espera de que ela se revele”.

Em “Breeders”, essa reserva está presente desde o primeiro momento. Na primeira cena do piloto, adaptada do sonho de Freeman, Paul grita com seus filhos de uma maneira que o personagem descreve como “clinicamente insana”. Freeman não parece estar atuando –o que talvez aconteça porque “Breeders” aproveita de forma tão explícita suas experiências pessoais, ou talvez porque atuar sem parecer que está atuando seja um de seus traços característicos.

“Não quero ver a [palavrão] do trabalho”, ele disse. “Porque a impressão é sempre a de que você está tentando ganhar um prêmio”. Não significa que ele encare o trabalho com leviandade. Hawley mencionou que Freeman manteve seu sotaque de Minnesota por toda a rodagem de “Fargo”. Moffat, que disse que o ator “é quase um tesouro nacional”, definiu a situação assim: “Ele leva o trabalho muito a sério. Quando está trabalhando, está trabalhando”.

E em “Breeders”, ele realmente está trabalhando, porque um personagem como Paul –pré-terapia, sempre no limite da paciência– fica muito próximo do homem que Freeman costumava ser, mas não do homem que ele é.

Sua separação de Abbington, que ele descreve como “maravilhosa” e “uma atriz brilhante”, significa guarda compartilhada das crianças, e por isso ele passa menos tempo com os filhos e dá mais valor a esses momentos. Freeman aguarda com ansiedade pelos finais de semana “normais e tediosos” em companhia deles. “Tediosos e adoráveis”, ele esclarece.

The New York Times

Com tradução de Paulo Migliacci

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