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'Eco-pirata' brasileiro barrado pelo Japão viaja o mundo para impedir matança de golfinhos e baleias

Fotógrafo Guiga Pirá, 33, deixou emprego estável para atuar na ONG Sea Shepherd

Em imagem de setembro de 2012, baleia piloto (que é uma espécie de golfinho) capturada em Taiji, no Japão, conseguiu passar pela barreira de redes colocada pelos caçadores
Em imagem de setembro de 2012, baleia piloto (que é uma espécie de golfinho) capturada em Taiji, no Japão, conseguiu passar pela barreira de redes colocada pelos caçadores - Sea Shepherd/BBC News Brasil
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Felipe Souza
São Paulo

Um jovem fotógrafo com emprego estável em horário comercial, salário bom, com relacionamento e sem problemas pessoais. Uma vida estável, mas sem cumprir o desejo de infância de fazer alguma ação direta pela natureza.

Guiga Pirá, 33, pesquisou dezenas de ONGs para saber como poderia sair da zona de conforto e fazer a diferença em campo na defesa dos animais. Um estalo ocorreu na cabeça dele logo após assistir em 2011 ao documentário "Eco-Pirata: A História de Paul Watson", fundador da ONG Sea Shepherd, com sede nos Estados Unidos.

"Saí do cinema com a ideia de abandonar tudo e virar um ativista. Na época, eu não estava fazendo o que eu queria até o fim da minha vida. Eu não estava feliz. Me tornei vegano, tive uma ligação com direitos animais e ambiental. Isso me afeta desde cedo, mas eu nunca tinha percebido que eu poderia fazer disso o motor da minha vida", conta em entrevista à BBC News Brasil.

Um dia depois de conhecer a história do fundador da Sea Shepherd, ele entrou no site da ONG e procurou entender como poderia ajudá-los em campo. O jovem, na época com 24 anos, disse que estava disposto a abandonar o emprego e gastar todas as economias para ajudar a divulgar a matança de golfinhos que ocorre todos os anos durante a temporada de caça legal no Japão.

"Um voluntário tinha acabado de ser preso injustamente no Japão acusado de ter agredido o funcionário de um resort. Não tinha ninguém para provar que ele era inocente. Nesses casos, a maioria das pessoas assume os crimes, pagam multa e são liberados. Mas ele não assumiu e estava disposto a ir para a cadeia e lutar pela liberdade com a verdade. Ficou 23 dias preso e depois recebeu uma indenização de US$ 10 mil (cerca de R$ 50 mil)", afirmou.

O brasileiro imaginou que outros ativistas pudessem ficar com medo e se ofereceu para substitui-lo. A ONG aceitou e ele ficou três meses no Japão —a maior parte dos ativistas fica uma semana.

"Ninguém tinha tanto comprometimento. Fiz meu melhor trabalho. Estava sem emprego, tinha gastado tudo. A ONG entrou em contato comigo para dizer que gostou da minha postura e me convidar para participar da próxima temporada", conta Guiga.

Ele participaria das atividades de filmar e divulgar imagens dos animais sendo mortos —geralmente imagens em que o mar está vermelho por causa do sangue— e pressionar o governo a proibir a matança.

O brasileiro retornou como assistente de líder. Quiseram que ele voltasse também em 2013, mas Guiga foi barrado quando tentou tirar o visto. Conhecido pelo governo japonês pela campanha que fez durante seis meses em 2012, o jovem teve sua entrada negada.

"Voluntários que voltam duas vezes têm o terceiro visto negado. Eu já esperava isso. Mas ao invés de apenas negarem, me deram um questionário sobre a organização. Queriam saber quem eram as pessoas envolvidas. Queriam que eu delatasse meus companheiros. Eu jamais faria isso com a causa pela qual estou lutando", afirmou.

Guiga insistiu que não responderia e os funcionários do Consulado disseram que só devolveriam o passaporte quando ele respondesse o formulário. Ele negou, mas conseguiu o documento de volta.

"Eu entrei para uma lista de persona non grata no Japão. Então me mandaram para as Ilhas Faroé como líder de equipe, onde passei três meses. Em 2015, fui como marinheiro e fotógrafo do navio", relata Guiga.

Ele conta que o tempo no mar longe do país de origem, correndo risco de ser preso e arriscando a vida, colocou em xeque seu relacionamento e a relação com a família. Ele disse que tudo piorou quando contou que tinha gastado todo o dinheiro para viajar com pessoas desconhecidas.

A família de Guiga achou que ele "estava maluco". "Expliquei que colocar minha segurança e liberdade em risco não é nada perto do que esses animais sofrem na mão de caçadores. Isso é um dever meu como cidadão do mundo. E espero de fato que as pessoas se enxerguem como cidadãos do mundo. O que acontece no Brasil não fica aqui. Interfere em um ecossistema gigantesco. Tento enxergar tudo de maneira holística e global", afirmou.

Hoje, Guiga é conselheiro da Sea Shepherd Brasil, fundador da ONG em Portugal, onde viveu nos últimos três anos, e tripulante veterano em missões.

Morando no Rio de Janeiro, sua cidade natal, ele trabalha como fotógrafo freelancer e organiza missões da ONG ao redor do mundo. Ele diz que o próximo destino dele deve ser a costa oeste africana ou o México para combater a pesca ilegal.

Ele conta que em todas as missões é necessário exercer diversas funções, inclusive fazer manutenção no navio.

"Já fiquei seis meses embarcado como fotógrafo e marinheiro de convés. Recebi treinamento para fazer manutenções porque isso é algo constante. Você tira a ferrugem da proa e aparece uma nova na popa. Não existe pausa e isso permitiu ajudar em diversas áreas", conta Guiga.

Imagens para chocar o mundo

O Japão permite uma caça anual de golfinhos na cidade costeira de Taiji. A deste ano começou no início do mês e vai até fevereiro de 2021. Os pescadores podem matar até 2.000 animais nesse período. O principal argumento usado é a tradição cultural de capturar e comer a carne dos animais.

Os caçadores usam uma técnica de perturbação sonora para conduzir e encurralar os animais numa praia antes de matá-los.

"Esse argumento é usado de forma estratégica em diversas outras culturas para se tornar inabalável. Mas quando essa cultura local interfere em um ecossistema global isso não é algo de povo específico. Cada golfinho desempenha um papel no equilíbrio do ecossistema global marinho e não pode ser morto em nome de uma tradição", afirmou.

Vegano, Guiga não consome nenhum produto de origem animal, mas faz uma comparação para dizer que a criação de gado é menos prejudicial ao ecossistema que a matança de golfinhos.

"O gado é criado para isso. Esse animal não desempenha um equilíbrio na natureza. Foi criado para ser morto. É o contrário da caça de golfinho e baleias, que estão na natureza desempenhando seu papel e tem uma importância na cadeia alimentar marinha", afirmou.

A Sea Shepherd pratica o que chama de ativismo não violento. A intenção do grupo é choque e reação no mundo divulgando as imagens de sofrimento e violência contra os animais ao serem mortos para pressionar governos a proibir a prática e incentivar consumidores a boicotar o consumo. Os ativistas da Sea Shepherd dizem que até mesmo em caso de agressão não vão revidar.

No caso do Japão, como a caça é feita em alto mar em águas do país, a ONG não pode entrar legalmente e impedir a matança. O governo japonês não permite o acesso porque entende a atuação dos ativistas como uma interferência em negócios internos.

Sem poder impedir fisicamente, pois poderiam inclusive ser classificados como terroristas, o papel dos ativistas é incomodar e registrar a matança o máximo e mais próximo possível. Muitas vezes com a ajuda de moradores locais.

"A gente cria imagens em campo para divulgar para o mundo o que está acontecendo. Nossa presença massiva com câmeras fez com que caçadores tentassem esconder esse processo de captura e matança. Não querem que o mundo veja o mar vermelho de sangue e golfinhos boiando. Isso é prejudicial para a imagem do Japão", conta Guiga.

Depois das ações da ONG, caçadores passaram a usar lonas, instalar barreiras e procurar a parte mais escondida da enseada para abater os animais. Mas isso atrasa o trabalho dos pescadores e diminui o sucesso.

Hoje os ativistas dizem que é mais difícil fazer imagens gráficas dos golfinhos mortos, mas ainda conseguem registrar rabos se debatendo e outras cenas por baixo da lona.

Em 2014, os caçadores só mataram cerca de 30 golfinhos entre os 2.000 que poderiam ter abatidos durante os seis meses da temporada de caça, graças à pressão dos ativistas. Além das ações de filmagem, eles ainda usavam seus navios para fazer um movimento sonoro contrário orientando os golfinhos para longe da ilha onde ocorre o abate. Hoje, a ONG não atua mais no Japão.

"Temos recursos limitados e com pouco mais de dez navios a gente não consegue estar em todos os lugares. Tem que escolher as batalhas baseados no nível de sucesso e retorno para nossos objetivos. Tivemos um grande sucesso na divulgação dos massacres no Japão. Nosso combate hoje é contra a pesca ilegal. Isso não só tira esses jogadores ilegais, mas também os prende. Isso salva tartarugas, baleias, golfinhos, raias, etc".

Ele afirma que há três equipes atuando na África, ajudando guardas costeiras de países do continente a prender pescadores ilegais. Guiga explica que isso também protege golfinhos, que não são alvos da pesca, mas acabam sendo vítimas.

Ele cita que na costa francesa quase 10.000 golfinhos são mortos por conta da pesca. Ao interagir com as redes de pesca, eles se ferem ou morrem afogados por ficarem presos sem conseguir subir à superfície para respirar. Os animais são então descartados porque não é permitido o consumo da carne de golfinho na Europa.

Jubarte e boto no Brasil

O ativista Guiga Pirá conta que as campanhas da ONG estão se expandindo para outros países, como Chile, México, França e Alemanha. Mas cada país tem sua singularidade.

No Brasil, não existe a caça de golfinhos, por isso, um dos focos da ONG é a matança de botos no Norte. A carne do animal é usada na região como isca para a pesca da piracatinga e também por uma questão cultural. Muitos acreditam na lenda do boto cor-de-rosa, que seduz meninas e tira virgindade delas.

Guiga explica que também ocorre morte de golfinhos e baleias no Brasil por conta da pesca acidental. Muitas vezes o golfinho fica preso em redes usadas para pescar atum.

Outro problema no país é o turismo de avistamento de baleias durante a temporada de acasalamento da espécie branca, em Santa Catarina, e da jubarte —principalmente em Abrolhos, na Bahia, e Ilhabela, em São Paulo.

Segundo o ativista, como esses animais não se aproximam da costa, muitas agências fazem o avistamento embarcado. E por estarem próximos à arrebentação e terem medo de encalhar, os barcos não desligam os motores. O barulho pode desnortear os animais, que amamentam seus filhotes próximos à costa e fazê-los encalhar, além do risco de atingi-los com as hélices do motor.

Após anos de insistência, a ONG conseguiu impedir o avistamento embarcado em Santa Catarina. Durante a temporada de avistamento, o grupo ainda sai em embarcações pra fazer monitoramento para alertar embarcações próximas de baleias.

A ONG quer se expandir no Brasil para fazer campanhas de educação ambiental em escolas infantis principalmente em regiões mais pobres.

Escravos do entretenimento

O segundo ponto mais conhecido pela caça de golfinhos são as Ilhas Faroé, um território dependente da Dinamarca. A diferença para o Japão é que essa região não tem uma temporada de caça. É possível matar os animais em qualquer época do ano.

Os animais mais comuns na região são golfinho-de-laterais-brancas-do-atlântico e as baleias-piloto.

Os golfinhos fazem uma rota migratória no verão hemisfério norte e passam pela região seguindo grupos de lula, que são o principal alimento deles. Os pescadores das Ilhas Faroé têm uma grande frota de pesca e aproveitam para caçar golfinhos.

"Quando avistam golfinhos perto da ilha, eles se comunicam por rádio e direcionam em conjunto os peixes com os métodos de tortura auditiva para uma das 26 praias permitidas para o abate. Mas o principal foco deles não é a carne dos animais, mas sim vendê-los para os parques aquáticos", explicou o ativista.

Logo após a captura, ocorre uma seleção de golfinhos.

"Os mais jovens e sem cicatrizes naturais são oferecidos a parques, como o Sea World e Zoomarine, e viram sacos de dinheiro. Um golfinho morto vale US$ 600 (cerca de R$ 3.100 mil), mas vivos são muito caros porque vão render bilhetes de entrada para shows e podem custar US$ 100 mil cada (R$ 520 mil). Isso é mais cruel que a morte. Ele é escravizado e só é recompensado por comida. Precisa estar com fome para fazer o salto para ter a necessidade de se alimentar", afirmou.

Ele conta que alguns golfinhos morrem por não aceitarem o treinamento e a comida oferecida, pois não estão acostumados com comida na boca, mas sim caçar seu próprio alimento.

"O animal não sente fome quando vê a comida. Fazendo um paralelo com os humanos, é igual quando a gente quando vê uma vaca. Não sentimos fome. Mas quando ela está assando na churrasqueira sim porque é a maneira como a gente ingere", explica Guiga.

Por esse motivo, conta Guiga, parques são forçados a comprar pelo menos sete ou oito animais.

"Por isso focamos nossa campanha contra os cativeiros que mantêm e comercializam. Se acabar com o cativeiro, acaba com a caça. Também estamos tentando conscientizar as pessoas de que se elas pagam para tirar foto ou nadar com golfinhos em um resort ou se você está pagando um bilhete para vê-los num parque aquático, você está financiando a matança", diz Guiga.

A estimativa é de que até mil golfinhos são mortos ou capturados por ano na região das Ilhas Faroé.

Sangue no Google

Guiga diz que é mais fácil entrar na Ilhas Faroé (localizadas ao norte da Grã-Bretanha) do que no Japão e lembra uma grande operação feita na região em 2014, com voluntários fazendo imagens e interferindo diretamente na ação dos caçadores.

"Nos colocamos entre baleias e caçadores. Tivemos voluntários deportados, presos e vítimas de violência, mas isso fez com que o mundo conhecesse mais o que acontece lá. Se você procurar no hoje no Google as palavras Taiji ou Faroé vai ver imagens de matança", afirmou.

"Nas Ilhas Faroé essa caça começou com os vikings isolados que viviam da natureza. Mas o tempo em que essa prática ocorre não faz com que ela se torne menos pior. Hoje as ilhas têm condições financeiras comparadas a grandes países europeus. Você encontra no supermercado produtos de todos os lugares do mundo, então não precisa mais da carne de golfinho. Fora que nem tudo que é cultural é aceitável ao longo do tempo. Um exemplo é a escravidão. Culturas são belas, mas devem avançar de acordo com o tempo", afirmou.

O ativista brasileiro pondera que o Japão usa o argumento de tradição cultural, mas usa alta tecnologia, embarcações rápidas e GPS.

Guiga explica ainda que a carne de golfinho é tóxica, com altos índices de mercúrio. Por serem animais do topo da cadeia alimentar, eles têm uma bioacumulação, inclusive de poluição. Isso porque o animal pequeno é consumido pelo médio, que ingere e absorve a carga de poluentes do anterior e assim por diante.

O ativista brasileiro conta que nas ilhas há inclusive alertas para que crianças e mulheres grávidas não consumam a carne de golfinho, principalmente a gordura. O alimento pode causar diversas doenças, como impotência e Parkinson.

Ele define o ativismo como um trabalho exaustivo e que exige persistência e constância, mas recompensador. Hoje, Guiga é casado e diz que a esposa dele entende a importância dessa entrega. Além do trabalho na ONG, ele é fotógrafo freelancer no Rio de Janeiro.

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