Contrato de Gusttavo Lima com prefeitura pode não ser ilegal mas é imoral, diz advogado
'Do ponto de vista da transparência, a Lei Rouanet é mais eficiente e justa', afirma
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Diante dos questionamentos a respeito do recebimento de cachês milionários, vindos de prefeituras paupérrimas, o talentoso cantor Gusttavo Lima defendeu-se alegando que não seria obrigação sua fiscalizar dinheiro público, que seu trabalho, como o de todo mundo, tem um valor, e que ele se limita a cobrar o que acha justo para remunerar suas horas de show, sem checar como e de onde vem o dinheiro que o remunera.
Esse reducionismo da "defesa" do artista -na linha de que ele simplesmente diz o seu preço e, se pagarem, ele canta sem olhar de onde vem a grana, mesmo que tais valores venham de municípios pobres, cujo orçamento anual de saúde ou educação equivaleria à sua remuneração -, não soa crível.
Isso porque as equipes de artistas com o status do Gusttavo Lima, embaixador do gênero sertanejo, estão, sim, sempre de olho na origem do dinheiro e boa fama de seus contratantes. Tanto que não fazem comerciais de cigarro, empresas encrencadas em escândalo de corrupção, determinados remédios, agrotóxicos, determinados cosméticos e nada que possa afetar sua imagem.
A Constituição Federal e as leis de Direito Administrativo determinam que toda contratação de serviços ou produtos deve ser precedida de licitação, evitando, com isso, que o Estado (a) privilegie uma única empresa; (b) feche negócio com preços superfaturados; e (c) eventualmente contrate alguém que não tem expertise ou condições de cumprir a obrigação que assumirá com o Poder Público.
Importante destacar que depois de ganhar uma licitação, a pessoa jurídica ou física que prestará os serviços ao Estado assina um contrato e, caso o descumpra, sofrerá severas sanções, como, por exemplo, de ficar impedido de participar de novas licitações.
Há algumas hipóteses legais, entretanto, em que o Estado pode contratar com dispensa de licitação, como é o caso, por exemplo, de equipamentos médicos e vacinas para atender urgências como a do Covid, ou quando o serviço é prestado com excelência por uma única pessoa ou empresa, como é o caso de um artista talentoso como Gusttavo Lima.
Assim, não há nada de ilegal quando a equipe do jovem cantor contrata, sem licitação, a realização de um show, mas soa imoral receber a bolada de dinheiro público de olhos fechados para o compromisso social que um homem que influencia multidões, como é o caso de Gusttavo Lima, deve possuir e exibir de exemplo.
O dinheiro que aumentará ainda mais o fausto e o luxo que o cantor ostenta nas redes sociais acarretará, inevitavelmente, na miséria daqueles que, desavisados, o aplaudem sem a consciência de que aquele aplauso perpetuará escolas e hospitais em situação precária.
Por isso, entre contratar direto com o município, sem licitação, e recorrer a Lei Rouanet, essa segunda hipótese, do ponto de vista de transparência, gestão do dinheiro público e fiscalização é muito mais eficiente e justa que a primeira hipótese, isso porque:
(a) Pela Lei Rouanet, o artista tem um limite, um teto para captar. Pela contratação direta com o município, não há limite;
(b) Pela Lei Rouanet, o projeto do artista passa por uma análise criteriosa de necessidade e adequação entre o valor pleiteado e o que trabalho artístico que será oferecido. Na contratação direta com o município não há essa análise;
(c) Pela Lei Rouanet, uma vez sendo aprovado o projeto do artista, ele tem que ir em empresas que tenham interesse de investir até 6% do seu imposto de renda em cultura, ou seja, não há desvio de dinheiro de educação e saúde (ou outro setor). Já pela contratação direta com o município, pode haver desvio de valores que eram destinados a serviços essenciais (como educação e saúde) para pagamento direto ao artista;
(d) Pela Lei Rouanet, o artista contemplado tem que cumprir diversas contrapartidas, como fornecer ingressos para pessoas portadoras de deficiência, promover acessibilidade e meia entrada para estudantes. Ao contratar direto com o município, o artista não tem outra contrapartida que não seja apresentar o show contratado;
(e) Pela Lei Rouanet, o artista deve prestar contas de absolutamente TODOS os gastos que teve, centavo por centavo, de cada parafuso, lata de tinta, funcionário, enfim, de todo e qualquer produto e mão de obra empregados no projeto, sob pena de ter que devolver os valores não comprovados. Ao contratar direto com o município, o artista não tem que comprovar absolutamente nada relativo aos gastos que teve;
(f) Pela Lei Rouanet, o artista não pode promover um político, fazendo propaganda da sua gestão. Já ao contratar diretamente com o município, o artista acaba fazendo publicidade para o prefeito, com verba pública.
Enfim, contratar e receber diretamente com o poder público pode não ser ilícito, mas exige atenção redobrada do artista, para que ele, ainda que de forma impensada, não acabe protagonizando uma situação imoral.