Tony Goes

Por que a série 'The Chosen' é tão melhor que as novelas bíblicas da Record?

Produção americana tem algo que falta às brasileiras: um bom roteiro

Imagem da série 'The Chosen', disponível na Netflix - Divulgação

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São Paulo

Até duas semanas atrás, eu nunca havia ouvido falar em "The Chosen", ou "Os Escolhidos". Um deslize considerável para alguém que se acha muito bem informado, sempre a par das novidades da TV americana.

A chegada ao Brasil do criador da série, Dallas Jenkins, seguida pela notícia de que o SBT havia comprado as três primeiras temporadas, fez com que este fenômeno midiático finalmente entrasse no meu radar. Do qual ele conseguiu escapar até então por uma razão prosaica: "The Chosen" é o que se chama nos EUA de "entretenimento cristão", um gênero pelo qual eu tenho zero interesse.

Pois deveria ter, ao menos pelos números. A série teve seu episódio piloto lançado no Facebook em 2017, e gerou comoção imediata. Também atraiu investidores em esquema de "crowdfunding", financiamento coletivo, o que garantiu o lançamento da primeira temporada em 2019. E se tornou um enorme sucesso, sem ser exibida por nenhum canal de TV, aberto ou fechado. Os episódios eram disponibilizados gratuitamente no YouTube ou por meio de aplicativos. Inclusive no Brasil, onde se formou uma imensa legião de fãs.

Por aqui, a primeira temporada de "The Chosen" também pode ser vista na Netflix e no Globoplay. Isso atiçou minha curiosidade. Resolvi assistir aos dois primeiros episódios, para entender melhor do que se tratava.

Acabei vendo a temporada inteira em quatro dias, porque a série é realmente boa. Não é uma produção suntuosa e nem todos os atores são incríveis, mas "The Chosen" acerta na mosca no quesito mais importante de todos: o texto.

Que parte de uma ótima premissa: contar a história de Jesus Cristo do ponto de vista de seus seguidores, seres humanos cheios de defeitos como qualquer um de nós. Os roteiristas tomaram o cuidado de não alterar nada que está na Bíblia, mas acrescentaram inúmeros detalhes e criaram histórias pregressas bastante interessantes para figuras como Simão Pedro ou Maria Madalena.

O primeiro, por exemplo, está atolado em dívidas, e tenta fazer um acordo meio espúrio com os romanos. Já Madalena sofre de estresse pós-traumático, pois foi violentada por um soldado e caiu na prostituição.

Mateus, o cobrador de impostos, está no espectro do autismo, algo totalmente desconhecido dois mil anos atrás. Ele provavelmente é um "idiota sábio", dono de uma fantástica habilidade com números e bem pouco traquejo social.

Para mim, o personagem mais fascinante de todos é Nicodemos, o sacerdote fariseu citado apenas no Evangelho de São João, onde aparece três vezes. Membro do Sinédrio, a cúpula do clero judaico, ele é um homem rico e poderoso, mas percebe que há alguma coisa estranha e maravilhosa tanto em João Batista como em Jesus. No entanto, mesmo reconhecendo que este é mesmo o Messias, Nicodemos não tem coragem de se juntar aos apóstolos.

Todo bom personagem carrega contradições internas, e este não é o caso do Jesus de "The Chosen". Ele exala sabedoria e tranquilidade, ao contrário, por exemplo, daquele retratado por Martin Scorsese no filme "A Última Tentação de Cristo", que vivia um intenso conflito entre suas naturezas humana e divina.

Mas não há nenhum problema nisso. O séquito de humanos imperfeitos, com seus dramas e falhas, mais do que compensa a placidez de Jesus –que, diga-se a seu favor, é bem-humorado, acessível e nada pomposo.

"The Chosen" não deixa de ser uma ferramenta de catequese, claro. Quer confirmar a fé dos convertidos e conseguir novos adeptos para o cristianismo. Mas não tem a mão pesada das novelas bíblicas da Record.

No ar há mais de uma década, os folhetins religiosos da emissora melhoraram muito na cenografia e na direção de arte. Também houve avanços na qualidade do texto, mas que foram perdidos depois que Cristiane Cardoso, filha do bispo Edir Macedo, passou a controlar a dramaturgia da Record.

Hoje as novelas da casa são francamente chatas, para não dizer insuportáveis. Os personagens não têm profundidade nem geram identificação com o público. Diálogos rasteiros são declamados por atores despreparados e acabam funcionando quase como propaganda negativa para a Igreja Universal do Reino de Deus. Não admira que nenhuma produção do gênero venha se destacando na audiência, já faz algum tempo.

Os roteiristas da Record bem que poderiam assistir a "The Chosen" e tomar notas. Aliás, aposto que muitos já estão fazendo isto.