Tony Goes

Anárquico e contestador, Zé Celso era muito mais patriota que os reacionários de camisa da seleção

Brasil perde um agitador cultural, e São Paulo, o defensor do Parque Bixiga

O dramaturgo Zé Celso - Marcelo Justo/Folhapress

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São Paulo

Faltam palavras para descrever a dor e o espanto pela morte trágica de Zé Celso Martinez Correa. O maior diretor teatral brasileiro em atividade se foi na manhã desta quinta (6), depois de ter mais de 50% do corpo queimado em decorrência de um incêndio em seu apartamento, na madrugada de terça (4).

Zé Celso teria garantido um lugar de honra na história das nossas artes cênicas apenas pela montagem revolucionária de "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, em 1967. Mas ele fez muito mais. Montou "Roda Viva" de Chico Buarque, em 1968, alvo da fúria do Comando de Caça aos Comunistas, organização paramilitar de extrema direita, e mais dezenas de outros espetáculos contestadores. Com muita música, muita interação com a plateia e muitas horas de duração, eram verdadeiros happenings.

O diretor e dramaturgo era, aliás, a encarnação de tudo o que os conservadores mais detestam. Irreverente, dionisíaco, anárquico, escancaradamente homossexual. Em junho passado, oficializou seu casamento com o ator Marcelo Drummond, com quem já vivia há 37 anos. O casal deu uma festa de arromba no Teatro Oficina, há décadas o QG criativo de Zé Celso.

O entorno do teatro, aliás, virou o cerne de uma disputa jamais resolvida com Silvio Santos. O dono do SBT adquiriu o terreno que circunda o Oficina, onde pretende construir três torres de até cem metros de altura cada, totalizando 1.000 apartamentos e 1.000 vagas de garagem. O projeto desfiguraria o arrojado design da arquiteta Lina Bo Bardi para o Teatro Oficina, que perderia a vista de suas imensas janelas.

Zé Celso defendia que a área fosse transformada no Parque Bixiga –ou Parque do Rio Bixiga, para enfatizar que ali corre um rio, hoje canalizado, e que também há um lençol freático apenas quatro metros abaixo do solo. Com sua morte, a criação desse parque fica ainda mais incerta.

Em 2017, eu escrevi uma coluna aqui no F5 exortando Silvio Santos a ter um gesto de grandeza e desprendimento. Como uma espécie de agradecimento à cidade onde construiu seu império, ele doaria o terreno à Prefeitura, que finalmente o transformaria num parque –o Parque Silvio Santos.

Hoje mudei de ideia. Esse parque merece ser batizado de Zé Celso Martinez Correa, porque ninguém lutou mais por essa área verde do que o diretor teatral. Zé Celso, aliás, tinha uma ligação profunda e visceral com o Bixiga, onde realizou muitos de seus mais importantes espetáculos.

A figura do diretor causava frêmitos de horror nos reacionários, mas o fato é que ele era muito mais patriota do que essa corja que veste camisa da seleção para depredar palácios. Zé Celso investiu contra o estilo europeu e algo enferrujado que dominava o teatro brasileiro até a década de 1960, e trouxe uma brasilidade inquestionável para o palco. O Brasil estava inteiro ali. Com toda sua beleza, seus defeitos e sua glória.