Fantasias realmente ofensivas são mais raras, mas o patrulhamento segue firme na internet
Carnaval é irreverência, e o insulto sempre fez parte da festa
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No Halloween de 2021, Bruna Marquezine postou no Instagram uma foto em que aparecia fantasiada de "enfermeira sexy", um clássico dos antigos bailes de Carnaval. Mas ela não expunha mais do que o colo e os braços, e a pose em si nem era das mais provocativas.
Mesmo assim, a atriz foi criticada por internautas e até mesmo ameaçada de processo pelo Coren-SP (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo). Assustada, Marquezine tirou a foto do ar, publicou um pedido de desculpas e ainda chamou de heróis os profissionais da enfermagem.
Concordo que eles sejam mesmo heróis e entendo a rejeição da classe à erotização da profissão, que de sexy não tem nada. Mas Carnaval e Halloween são festas irreverentes, que viram o mundo de cabeça para baixo. Regras são quebradas, ofensas são proferidas. Não sabe brincar, não desce pro play.
Neste Carnaval de 2023, Fátima Bernardes e Túlio Gadelha cometeram a heresia de saírem vestidos de médica e enfermeira nas ruas de Olinda. Nenhuma conotação sensual: o casal só queria homenagear os profissionais de saúde, que acabam de enfrentar, em condições terríveis, a pior pandemia dos últimos 100 anos.
Para quê, não é mesmo? "Enfermagem não é fantasia e sim profissão", reclamou uma internauta. "Só faltam colocar em vigor o piso salarial da enfermagem, né, queridos? Essa, sim, seria uma grande homenagem aos profissionais", queixou-se outra, como se a apresentadora e o deputado federal tivessem o poder de, por si mesmos, aprovar o projeto de lei que há anos tramita no Congresso.
Mas nada foi tão ridículo como as reações de fundamentalistas à fantasia que Sabrina Sato usou no desfile da escola de samba paulistana Gaviões da Fiel. Em tons de vermelho e amarelo, o traje criado pelo estilista Henrique Filho remete a chamas, a calor, a vibração. E até pudico se comparado ao look de Paolla Oliveira, que resplandeceu praticamente nua na Sapucaí com madrinha da bateria da Grande Rio.
O que incomodou os teocratas foi o contexto: a fantasia de Sabrina era inspirada no dragão morto por São Jorge, uma lenda não reconhecida pela Igreja Católica. E o enredo da Gaviões era a tolerância religiosa. Neste ponto, foi plenamente bem-sucedido, pois provocou os intolerantes: "Fantasia de demônio e vocês achando linda?", vociferou uma fanática. "Satanás está solto!", gritou outra.
A "libertação" de Satanás durante quatro dias é justamente uma das premissas do Carnaval, que surgiu no fim da Idade Média como um breve intervalo em que os prazeres seriam permitidos logo antes da quaresma, o período de 47 dias que antecede a Páscoa, durante o qual os devotos deveriam jejuar e se abster de muita coisa. Ou seja: é um festival quase antirreligioso, descendente direto de celebrações pagãs em que o sexo e a bebida rolavam soltos.
Já as fantasias modernas são herdeiras das máscaras, que começaram a ser usadas pelos foliões de Veneza na época do Renascimento. A máscara cumpria então sua função mais prosaica: ocultar a identidade de seu portador. Sem que ninguém soubesse quem ele era, o sujeito estava livre para aprontar de tudo.
O Carnaval se espalhou para além da Europa e adquiriu diferentes significados pelo mundo afora. Aqui no Brasil, acabou se firmando como uma comemoração da brasilidade. Achamos que somos um povo alegre, e o Carnaval é a janela ideal para expressar essa alegria.
Mas o sentido de subversão da festa acabou se diluindo. São tantas as micaretas, carnavais fora de época e festas do peão boiadeiro que se realizam pelo país todo, o ano inteiro, que o reinado de Momo virou só mais um reboliço. Até porque pouquíssima gente ainda faz algum tipo de sacrifício durante a quaresma.
Juntem-se a isto as sensibilidades exacerbadas dos dias de hoje, e o resultado são distorções como a lista de fantasias "proibidas" divulgada pelo governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT). Quem apoia esse tipo de "policiamento" ainda não entendeu que quem se fantasia de indígena não está apoiando a ex tinção dos yanomami, e sim manifestando a vontade de compartilhar da (imaginária) liberdade dos povos originários. Homens que se vestem de mulher tampouco estão tirando sarro de travestis e transexuais, mas sim de si mesmos.
Carnaval é galhofa, gente. Claro que a liberdade de se fantasiar não significa que qualquer fantasia seja válida. Assim como no humor, existem limites. Mas as fantasias realmente ultrajantes, que ridicularizam minorias indefesas, são cada vez mais raras. A imensa maioria dos foliões de 2023 prefere sair de Geleia da Shakira, o que talvez ofenda apenas o Piqué e sua nova namorada.