Quem sofre perseguição injusta é a Lei Rouanet, não os sertanejos
Chega de demonizar nossos mecanismos de incentivo à cultura
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Gusttavo Lima teve a reação típica de qualquer bolsonarista quando é alvo de críticas: disse que estava sendo "perseguido". Durante uma live transmitida nesta segunda-feira (30), o cantor chorou, ameaçou "jogar a toalha" e garantiu que "não compactua com dinheiro público".
O secretário da Cultura Mario Frias defendeu o rapaz, dizendo que ele estava sendo vítima de "um ataque covarde". O próprio presidente afirmou que seu governo prioriza "o sertanejo mais humilde" –o que não é o caso, definitivamente, do milionário Gusttavo Lima.
Toda essa narrativa de perseguição cai por terra quando surgem os valores estratosféricos pagos por prefeituras do interior por shows de grandes nomes da música popular (e não só aos sertanejos, frise-se bem).
Também é importante ressaltar que, a princípio, não há nada de errado em governos estaduais e municipais bancarem apresentações de astros em festas como Carnaval, Réveillon e aniversários de cidade. Nos últimos dias, houve quem fosse às redes sociais brandir as quantias gastas pela Prefeitura de São Paulo na Virada Cultural, mas esta já era uma verba destinada à cultura.
O caso de Gusttavo Lima é especialmente complicado porque, entre seus três contratos que estão sendo investigados pelo Ministério Público, existe um com a prefeitura da cidade mineira de Conceição do Mato Dentro, que teria desviado R$ 1,2 milhão da saúde e educação para bancar um show que o cantor faria lá em junho.
Não é culpa dos artistas se uma prefeitura está praticando maracutaias, mas o fato é que esse universo das apresentações pelo interior do Brasil é pouco transparente e sem nenhum controle. Exatamente o contrário da Lei Rouanet, que já era rígida e exigente muito antes de Bolsonaro chegar ao Planalto.
Pergunte a qualquer opositor dessa lei como ela funciona, e eu aposto que ele não saberá responder. No máximo, dirá que o governo federal entregava somas astronômicas nas mãos de artistas já consagrados, em troca de apoio político.
Não é nada disso. A Lei Rouanet é um mecanismo complexo, tanto que muitos artistas precisam contratar especialistas na área quando querem inscrever algum projeto. O processo de aprovação é lento, e quando finalmente um projeto é aprovado (muitos não são), começa o que talvez seja a parte mais árdua para os agentes culturais: eles terão que bater na porta das empresas em busca de patrocínio. Elas, em retorno, poderão descontar esse valor do imposto de renda.
Ou seja, o dinheiro não sai diretamente dos cofres do Tesouro para a mão dos artistas. Fora que depois há que se comprovar cada gasto, por menor que seja: refeições, traslados, tanques de gasolina. Em suma, um pesadelo burocrático.
Mesmo assim, a Rouanet é importantíssima para a manutenção de museus, orquestras, festivais e inúmeras outras atividades culturais pelo país afora. A imagem do artista que mete a mão na grana e vai torrá-la em Paris não pode ser mais distante da realidade.
O que muita gente não entende é que a renúncia fiscal proporcionada pela Rouanet e outros mecanismos é compensada pela geração de empregos e pela movimentação da economia, que acaba revertendo em impostos para o Estado. Sem falar no óbvio benefício que é ter um setor cultural forte e operante.
Há fraudes? Há, como em quase tudo nesta vida. Mas, repito, os controles são infinitamente mais rígidos do que os de qualquer emenda do orçamento secreto do Congresso, que permite que se gastem fortunas sem nenhuma prestação de contas.
Já passa da hora de boa parte dos brasileiros pararem de demonizar a Lei Rouanet e outros mecanismos de incentivo à cultura. Todos os países civilizados têm algo parecido: a França, a Itália, até mesmo os ultraliberais Estados Unidos.
E, ao invés de choramingar, nomes como Gusttavo Lima deveriam se prontificar a colaborar com as investigações. Há uma notícia não-confirmada de que o cantor já teria recebido, como sinal, metade do valor cobrado pelo show em Conceição do Mato Dentro. Se isto for verdade, Lima deveria devolver imediatamente esses R$ 600 mil, que seriam destinados à saúde e à educação.
Ah, sim, e ele também precisa entender que, quando é pago por alguma prefeitura, está, sim, recebendo dinheiro público.
Muita gente tem celebrado o "tororó" de Anitta como o agente provocador desse imbróglio (para quem não sabe, foi uma crítica do sertanejo Zé Neto à tatuagem íntima da cantora, durante um show no Mato Grosso, que detonou a polêmica).
Mas, na minha opinião, quem merece aplausos é o jornalista Demétrio Vecchioli, que expôs num fio do Twitter os valores que a dupla Zé Neto e Cristiano estava recebendo da prefeitura da cidade mato-grossense de Sorriso. Foi ele quem destapou esse caldeirão, que agora cozinha algumas reputações em fogo alto.