Humor irreverente do Casseta & Planeta seria cancelado nos dias de hoje
Programa do grupo na Globo mudou a história do humor brasileiro
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Excessivamente cortês, Hélio de la Penã tira a cartola para saudar transeuntes que caminham em sentido contrário ao dele por uma frondosa alameda.
Todos trajam roupas de época. "Muito prazer. Chocolate". "Encantado. Chocolate, seu criado". "Mande recomendações à sua família. Chocolate". Entra então a voz de um locutor: "Chocolate Cumprimenta. A novela que começa às seis, só para dar boa tarde e boa noite".
A piada é tão boba que continua engraçada, 20 anos depois de ter ido ao ar. Mas hoje os risos seriam abafados por protestos nas redes sociais, que acusariam o programa Casseta & Planeta Urgente de praticar o chamado racismo recreativo.
É normal que as sensibilidades mudem com o tempo. A maneira de fazer humor também muda. O próprio Casseta & Planeta Urgente, que estreou na Globo há exatos 30 anos, em 28 de abril de 1992, foi o ápice de uma revolução que chacoalhou os humorísticos da TV brasileira.
Esta revolução começou um pouco antes, em 1988, com o TV Pirata, também na Globo. O programa inovou em vários sentidos. Seu elenco era formado por jovens atores que não podiam ser classificados apenas como comediantes. A redação estava cheia de gente com pouca ou nenhuma experiência em TV, como o escritor Luís Fernando Veríssimo, os cartunistas Glauco e Laerte, da Folha, e –não por acaso– o pessoal que produzia o jornal Planeta Diário e a revista Casseta Popular, duas publicações que faziam rolar de rir a garotada dos anos 1980.
Depois que o TV Pirata acabou, essa turma escreveu Doris para Maiores, uma mistura ousada de humor e erotismo comandada por Doris Giesse. O programa durou apenas de abril a dezembro de 1991, mas foi o embrião do Casseta & Planeta Urgente, que entrou no ar no ano seguinte e lá permaneceu por quase duas décadas.
Os sete membros da trupe –Hubert Aranha e Reinaldo Silva, vindos do Planeta Diário, e Beto Silva, Bussunda, Cláudio Manoel, Hélio de la Peña e Marcelo Madureira, da Casseta Popular– escreviam e interpretavam seus próprios esquetes, com um diferencial importante: nenhum deles era ator.
Enquanto o Saturday Night Live, da TV americana, já teve integrantes indicados ao Oscar, no Casseta & Planeta Urgente a canastrice era a regra. Isso dava um certo charme tosco ao programa: parecia que estávamos vendo um bando de amigos fazendo teatrinho no corredor da faculdade. E, de certa forma, estávamos mesmo.
O humor do grupo refletia a época. É importante lembrar que a ditadura militar só acabou em 1985, e a censura havia saído de cena com a Constituição de 1988. Um clima de liberou geral reinava na cultura brasileira, com gente pelada em comerciais e novelas, e crianças rebolando de shortinho às 10h na TV. Também se podia, pela primeira vez em décadas, tirar sarro dos políticos sem medo de ir em cana.
O Casseta & Planeta capitalizou tudo isso, disparando para todos os lados. Inclusive neles mesmos: Bussunda fazia piada de gordo, Hélio de la Peña e Claudio Manuel faziam piada de preto. Mas uma coisa é inegável: o ponto de vista era sempre o de um homem heterossexual. Alguns esquetes são tão machistas pelos padrões atuais que causam um indisfarçável desconforto.
Mesmo assim, nem tudo era permitido. A Globo não deixava que se fizesse troça com seus patrocinadores, nem com atrações da concorrência. Membros do grupo admitiram, anos mais tarde, que o governo Lula pressionava nos bastidores para não ser alvo de piadas.
O resultado é que, pouco a pouco, o Casseta & Planeta foi virando um humorístico chapa-branca, onde só se podia rir da própria Globo. Algumas risadas eram altas: quem viu jamais se esquecerá de Bussunda de peruca loura, imitando Vera Fischer.
A morte de Bussunda, em 2006, marcou o início do fim. O programa teve uma sobrevida de quatro anos, mas sua figura mais icônica não estava mais lá. Depois de 19 anos ininterruptos, terminou em 2010. Os remanescentes tiraram um ano sabático e voltaram ao ar em 2012 com Casseta & Planeta Vai Fundo, que durou só até o final daquele ano.
O clima já havia mudado. 2012 foi o ano em que explodiu o Porta dos Fundos. Uma nova geração ascendia ao pódio do humor brasileiro, egressa da TV paga e da internet: Whindersson Nunes, Marcelo Adnet, Tatá Werneck, Fábio Porchat, Dani Calabresa...
Nesses últimos 10 anos, o Casseta & Planeta seguiu em atividade, mas sem nunca repetir o sucesso anterior. Em diferentes combinações de elenco, fizeram programas no Multishow e na TV Cultura. No ano passado, a minissérie "Meu Amigo Bussunda", dirigido por Claudio Manoel e Micael Langer, e disponível no Globoplay, revisitou a história tanto do maior astro do grupo quanto do próprio programa.
Hoje, Hélio de la Peña se arrepende de não ter se engajado mais no movimento negro quando o Casseta & Planeta estava no auge. Enquanto isto, Marcelo Madureira caminhou para a direita, tornando-se um crítico feroz de Lula e Dilma.
Muitos dos esquetes do Casseta & Planeta Urgente envelheceram mal. O conceito de politicamente correto já existia nos anos 1990, e os caras o ignoravam alegremente. Fosse em 2022, haveria petições online clamando por desculpas públicas ou até pela extinção da trupe.
Mas é inegável a importância do Casseta & Planeta na história do humor brasileiro. Eles praticamente enterraram os bordões, que imperavam desde a era do rádio, e abriram uma temporada de caça em que qualquer um –homem, mulher, criança, gordo, magro, político, rico, pobre– podia levar um tiro em forma de esquete. E ninguém reagia com um tapa na cara: todo mundo ria junto.