Eu não vou passar pano para a Fernanda, mas também não vou passar vergonha
É má vontade interpretar de forma literal frase que claramente foi dita de forma figurada
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Lembra do sucesso que o Emicida fez quando lançou seu álbum "Amarelo"? Da música que todos nós cantamos a plenos pulmões, com os versos da canção "Sujeito de Sorte", do Belchior, aquela que diz: "Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro!"
Então, nós cantamos esses versos, mas nenhum de nós, de fato, morreu no ano passado. Nem eu que estou escrevendo, nem você que está lendo. Podemos ter chorado para cachorro, podemos até ter sangrado um pouco, mas estamos todos bem vivos, felizmente. E assim espero que todos continuemos.
Dizer "ano passado eu morri" é força de expressão. É uma figura de estilo, uma hipérbole em que há um exagero intencional. Não é literal, ao pé da letra. Todo mundo diz coisas assim, faz parte da língua. Certeza que sua mãe, seu pai, alguém da sua família já disse em um momento de raiva "ai que vontade de matar um!". Hoje, nas redes sociais, dizemos algo semelhante, mas bem mais divertido, o "vontade de perder meu réu primário", que também indica o desejo hiperbólico de cometer um crime de tanta raiva.
Mas ninguém aqui é criminoso ou defunto, somos só pessoas expressando nossos sentimentos com todas as nuances que a língua portuguesa nos permite.
Toda essa introdução é para dizer que apesar de um monte de coisas reprováveis e horríveis que Fernanda possa ter dito no Big Brother Brasil 24, seja por falta de delicadeza, letramento social ou por desvio de caráter, ela não falou sobre momentos de desespero da maternidade de forma literal. Momentos que, aliás, acontecem, sim, com as mães mais amorosas do mundo.
Digo isso porque sou uma verdadeira leoa apaixonada por meus filhos. Mas quando meu filho era pequeno, minha vida era bem difícil. Eu não tinha apoio familiar, morava mal, ganhava pouco e dependia de pagar pessoas que tinham menos ainda que eu para olhar por meu filho e minha casa, enquanto eu tentava manter meus cinco subempregos para pagar o aluguel e todas as despesas sozinha. E isso indo e vindo, amamentando, escrevendo, chorando.
Tinha dias que meu desespero só podia ser traduzido por expressões hiperbólicas como uma "vontade de tacar todo mundo contra a parede" e "sair correndo e sumir no mundo". E não adianta dizer que "não se diz isso nem por brincadeira", porque nenhuma mãe desesperada que se desdobra para sustentar a casa e criar os filhos está brincando com a vida.
Ao dizer isso, deixo bem claro que não vou passar pano para a Fernanda, mas também não vou passar vergonha me fingindo de sonsa e acusando-a de querer, de fato, jogar crianças pela janela. É muita má vontade interpretar de forma literal uma frase que claramente foi dita de forma figurada. Seria como ouvir a frase "as paredes têm ouvidos" e chamar a polícia para quebrar o cimento e ver se tem um morto emparedado com a orelha pra fora do reboco.
O que me parece é que estamos todos com os nervos à flor da pele (para usar mais uma figura de estilo). O mundo está em guerra, as notícias ruins nos bombardeiam, a internet está populada por fake news, o futuro parece incerto, estamos sem perspectivas e insatisfeitos. Esses sentimentos ruins vão se acumulando e, quando entramos nas redes, parecemos panelas de pressão, soltando vapor a ponto de explodir. Tudo vira motivo para agressões, xingamentos e ataques.
O BBB vira um detalhe, uma motivação, o que queremos mesmo é botar a raiva pra fora, arrumar uma briga e aliviar o desassossego. O que não melhora em nada a tensão, aliás. Isso pode até funcionar em alguns momentos, mas fazer isso o tempo todo? O dia inteiro? Todos os dias? Não dá. Vamos todos adoecer, se é que já não estamos doentes.
O que fazer? Parar com isso. Parar de ofender todo mundo. De atacar pessoas nas redes para defender participante de reality show que até outro dia você nem sabia que existia e de quem você nem vai lembrar daqui a alguns meses. E temos que parar, juntos, ao mesmo tempo, coletivamente.
Porque sabemos que no ano passado nenhum de nós morreu. Mas se continuarmos assim, azedos, amargos, infelizes, agressivos e desequilibrados, julgando e condenado a tudo e a todos, esse ano, a gente morre. Literalmente.