Rosana Hermann

Fantástico não pode ficar em silêncio após comoção gerada por reportagem sobre TDI

Interesse sobre tema das múltiplas personalidades foi tão gigante quanto confusão causada

Giovanna Blasi, que se apresenta como 'Sistema Resistência', em entrevista ao Fantástico - Reprodução/Globo

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Sim, eu vou falar do Fantástico (Globo), da matéria sobre TDI (Transtorno Dissociativo de Identidade) exibida no dia 20 de agosto, das entrevistadas, dos comentários na internet, dos oportunistas que surfaram o "hype" para conseguir views e seguidores. E vou falar sobre minha cobrança por uma resposta depois da repercussão insana que aconteceu nas redes sociais a partir da reportagem.

Mas, antes, vamos situar algumas coisas na linha do tempo.

2019 - Em junho, a Folha publicou uma matéria chamada "Traumas podem levar ao Transtorno Dissociativo de Identidade". A linha fina dizia "TDI é reconhecido mundialmente, mas há poucos casos diagnosticados no Brasil".

No texto, os repórteres entrevistam o psicoterapeuta Rémy Aquarone, um especialista em TDI que trabalha na Inglaterra. Segundo ele, "quando algo é insuportável, você desliga para não guardar memória daquilo" e "a dissociação é uma ferramenta comum da mente humana para evitar a absorção completa de experiências desagradáveis e é um fenômeno saudável para profissionais que lidam frequentemente com situações chocantes, como militares em guerra, médicos e bombeiros".

2021 - Começa uma trend no TikTok em que adolescentes se autodiagnosticam com problemas graves de saúde mental, entre eles, a síndrome de Tourettee e o TDI. Uma revista de saúde americana reporta e comenta esse fato perigosíssimo. O site Inverse relata que as comunidades no TikTok de pessoas que dizem ter TDI são gigantes, com pessoa que rapidamente juntam milhões de seguidores.

2022 - A trend se intensifica. Mais e mais adolescentes se autodiagnosticam com TDI. É quase uma onda de contágio. A psicóloga americana Naomi Torres-Mackie, PhD e pesquisadora-chefe do Mental Health Coalition, diz ao site da TeenVogue: "De repente, todos os meus pacientes adolescentes acham que têm TDI; não têm".

2023 - Maio. A revista brasileira Marie Claire, do grupo Globo, faz uma matéria sobre o mesmo assunto, focada numa personagem, uma garota jovem que usa o TikTok para falar de seu suposto diagnóstico de TDI. E explica que o transtorno, que é raríssimo, costuma ocorrer com crianças que sofreram abusos físicos ou sexuais antes dos 6 anos. A fragmentação da identidade seria uma forma de aguentar as lembranças do sofrimento.

2023 - Agosto. Domingo, dia 20. O Fantástico faz uma reportagem sobre TDI, entrevista a mesma personagem da Marie Claire e o mesmo especialista da reportagem da Folha em 2019. E alerta o espectador de que devemos deixar os questionamentos sobre diagnósticos para especialistas porque pessoas que têm algum tipo de transtorno são pessoas que estão em sofrimento.

No dia seguinte, porém, começam os questionamentos, em todas as redes, sobre as pessoas que disseram ter TDI e múltiplas personalidades no TikTok.

A experiência transmídia rende muitos posts, o interesse da sociedade é gigante: um fio de @JefinhoMenes no Twitter passa de um milhão de views; vídeos de psicólogas que explicam a raridade do transtorno também. O post do Fantástico no Instagram que fala de TDI tem quase 200 mil curtidas. Muita gente falou sobre o assunto só para ganhar seguidores. Basta tocar no assunto TDI que a audiência explode.

Depois do Fantástico, muitas informações novas surgiram. Por exemplo: uma das entrevistadas gravou um vídeo admitindo que não tem laudo e que se autodiagnosticou, exatamente como nas trends do TikTok. A outra entrevistada não tem laudo conclusivo. Postou a imagem de um papel timbrado de uma profissional da área de saúde com um relato e depois o apagou.

O Fantástico levantou uma onda, o interesse foi tão gigante quanto a confusão causada. Não sei você, mas eu espero uma continuação, uma resposta do programa. Quero esclarecimentos, quero levantamentos sobre adolescentes que se autodiagnosticam no TikTok, quero profissionais sérios falando de TDI, que é um caso raríssimo. E, se é tão raro, como podem ter comunidades gigantes no TikTok com tantos autodiagnosticados?

Eu entendo que um adolescente vivendo problemas, ou apenas buscando exposição e fama nas redes, diga coisas que não são reais, finja ter doenças mentais que não sabe se realmente tem. Mas um programa como o Fantástico, que está celebrando 50 anos, não pode começar uma conversa e responder com silêncio.