'Retrógrado e ridículo', afirma Ana Maria Machado sobre Bolsonaro
Escritora fala sobre política e feminismo em seus 50 anos de carreira
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Mulheres e meninas fortes, contestadoras e livres. Tanto na literatura adulta quanto na infantojuvenil. Quem lê a obra da autora carioca Ana Maria Machado, 77, logo percebe a característica que fala mais alto em suas as personagens: a independência feminina.
Foi assim nos clássicos infantis “A Menina do Laço de Fita” (1986) e “Bisa Bia, Bisa Bel” (1981) e é assim também na reedição de “A Audácia dessa Mulher” (R$ 59,90, 224 págs., Alfaguara, 1999). No livro, com o qual recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria envolve o leitor em uma trama de suspense e ciúme.
Feminista desde 1960, como ela mesma se define, a autora se orgulha de escrever personagens femininas fortes, que dizem “não” com frequência. Em alguma medida, as criaturas espelham a própria criadora.
Uma dos muitos escritores brasileiros que partiram para o exílio durante a ditadura militar, ela deu início à obra infantojuvenil fora do país, de onde enviou os primeiros textos da revista Recreio.
Apesar de considerar que ainda há “grandes diferenças” entre os dias atuais e a época da ditadura, não poupa críticas ao presidente Jair Bolsonaro (PSL): “Retrógrado e ridículo. Página infeliz de nossa história. Mas vai passar”.
E deixa claro que as redes sociais, por si só, não podem substituir o hábito da leitura. “Os livros não são o único caminho. Mas, sem o que está sendo escrito neles, ao longo da história, lamentavelmente perdemos algo precioso.”
Leia trechos da entrevista com a escritora Ana Maria Machado.
Podemos considerar o livro “A Audácia dessa Mulher” feminista?
Eu, a autora do livro, sempre me considerei feminista, desde a década de 1960. Logo, todos os meus romances devem ser feministas em alguma medida.
Seria a Bia uma mocinha contemporânea ainda tentando achar suas bases?
É sempre interessante ver como varia a leitura de uma pessoa para outra. Do meu ponto de vista, acho que a protagonista não é exatamente uma mocinha contemporânea, é simplesmente uma mulher de seu tempo.
Gostaria que me falasse da sua produção no período do exílio e se você se vê hoje saindo do país para pode trabalhar.
Quando saí para o exílio, em janeiro de 1970, meus únicos textos já publicados eram como jornalista, tendo trabalhado no Correio da Manhã desde 1962. Escrevi várias histórias infantis para a Recreio (muitas delas sobre temas do exílio, da autonomia pessoal, da busca de liberdade). Apesar da intolerância atual em certos meios para com a produção cultural, e também das tentativas de censura (do retrocesso a um obscurantismo deplorável, das pressões contra artistas e intelectuais), ainda há grandes diferenças em relação à realidade da época da ditadura. Sobretudo em termos da violência física oficial, institucional e sistemática, de desaparecimentos, de prisões arbitrárias. Na sociedade como um todo, agora sabemos o valor da democracia e estamos atentos.
Como foi a opção pelo começo pela literatura infantil?
Nunca fiz uma opção de começar minha criação literária na literatura infantil. Gostei de trabalhar literatura nesse registro de linguagem brasileira oralizante, familiar, coloquial, popular e de procurar fazer algo de qualidade com ela. Talvez também eu estivesse precisando respirar um certo frescor de linguagem. A literatura infantil era um oásis, uma oportunidade de passear por um campo lúdico tentador.
Tem vontade de voltar a trabalhar na imprensa?
Depois de mais de meio século de jornalismo, posso me decretar em aposentadoria da reportagem diária.
Como acha que seu trabalho está relacionado com suas iniciativas de incentivo à leitura?
Estudei em escola pública e em universidade federal, sei como foram importantes as oportunidades que me vieram desse contexto. É natural, portanto, que sempre, ao longo de toda a vida, eu tenha procurado devolver isso de alguma forma a uma sociedade de quem recebi tanto, em iniciativas de estímulo à leitura e ao contato com livros de qualidade.
Entre tantos outros, quais seriam, na sua opinião, os principais entraves para a criação do hábito de leitura no pequeno cidadão brasileiro?
Um histórico de pouca educação em geral. De negação de escolas boas à população. Isso dá pouca intimidade com a palavra escrita, uma certa intimidação diante dos livros. Até mesmo medo, muita gente cresce achando que podem ser assustadores, perigosos, ameaçadores.
Acha que a questão do feminismo de sua obra acabou esbarrando nos livros infantis?
Minhas personagens femininas são fortes, questionadoras, dizem “não”, com frequência são rebeldes, tomam as rédeas do destino. Mulher insubmissa é algo que na minha obra surge naturalmente e está em toda parte. Os exemplos são inúmeros, de “Bisa Bia, Bisa Bel” a "A Princesa que Escolhia”.
Você diz que saltamos do analfabetismo para a TV e as mídias sociais. Quais são os resultados para nós como sociedade? Como isso nos ajudaria a entender onde estamos e para onde vamos?
Não acho que ajude. Muito pelo contrário. A etapa intermediária da leitura faz muita falta. Acho que a pouca intimidade com a leitura nos atrapalha. Essa carência faz o debate ser superficial, a curiosidade ser simplória, a discussão ser rasteira. Por mais que tenhamos mais informação fácil, com a TV e as mídias sociais, nos falta uma educação de qualidade que inclua o convívio com livros, que incorpore a consideração de uma complexidade expressa pela palavra escrita, a demandar reflexão. Algo muito além de um clique. Por isso temos às vezes tanta dificuldade de entender nossas circunstâncias e buscar nossas saídas. Os livros não são o único caminho. Mas sem o que está sendo escrito neles, ao longo da história, lamentavelmente perdemos algo precioso.
Como você vê o governo Bolsonaro em relação à liberdade de produção intelectual?
Retrógrado e ridículo. Página infeliz de nossa história. Mas vai passar.