Saiba por que jovens de 'Euphoria' ouvem Sinead O'Connor, Tupac e Selena
De grandes sucessos ao underground, série da HBO não se preocupa com o real
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
Em uma festa de aniversário de um aluno de segundo grau, a mãe embriagada do aniversariante não parece disposta a impor qualquer restrição aos adolescentes convidados desde que eles sejam discretos. A trilha sonora é "This Is How We Do It", de Montell Jordan, uma relíquia indelével da década de 1990. "Amo essa música!", a mãe diz com um gritinho e acrescenta um palavrão.
Ao mesmo tempo, três adolescentes circulam em um carro sambado à procura de algum lugar onde possam roubar bebidas. "Trademark USA", do rapper Baby Keem, um astro em ascensão, explode dos alto-falantes.
Não muito mais tarde, um pai problemático estuda o cardápio da jukebox de um bar gay à procura de "Kick", do INXS, mas em lugar disso encontra "The Pinkprint", de Nicki Minaj. Ele termina por escolher a devastadora balada "Drink Before the War" (1987), de Sinead O’Connor, para dançar sozinho. Na festa de aniversário, uma menina bêbada usando um maiô está passando por uma crise e canta a mesma música, lançada muito antes de ela nascer.
Para alguns programas de TV, isso seria um episódio inteiro de grandes momentos musicais. Mas para "Euphoria", uma alucinação maximalista sobre a vida de um grupo atual de alunos de segundo grau, cuja segunda temporada está em cartaz na HBO, todas essas referências musicais, cuidadosamente calibradas, cobrem apenas um bloco do episódio e, como a série mesmo, buscam ressonância emocional mais do que precisão cronológica superficial.
Muitas vezes atulhando cada episódio de 60 minutos com mais de 20 faixas musicais –do underground a sucessos instantaneamente reconhecíveis, da década de 1950 aos anos 2020—, a série não enfatiza tanto as transições e em lugar disso prefere compor uma seleção de estímulos visuais e aurais ao estilo do TikTok, que saltam entre gêneros, eras e climas.
Além de O’Connor e Keem, um dos últimos episódios trouxe uma metamontagem de alusões de cultura pop ao som de "I’ll Be Here in the Morning", de Townes Van Zandt, e a estreia de uma nova canção de Lana Del Rey, além de uma apresentação ao vivo de Labrinth, o cantor e produtor responsável pela música original da série, interpretando um neogospel.
Uma trilha sucinta e elegante nunca foi o objetivo da série. "Não estávamos interessados em seguir essas regras", disse Julio Perez 4º, o principal editor de "Euphoria", que recorda discutir a criação de "uma galáxia sonora própria" com o criador, roteirista e diretor do programa, Sam Levinson. "Estávamos interessados em muita música –música demais, para alguns. A série, em certo sentido, seria um musical".
Uma colagem de flashbacks, sonhos diurnos, pesadelos e sequências musicais ritmadas que poderiam ser parte de um vídeo pop, "Euphoria" usa a interação entre sua trilha sonora eclética e as composições de Labrinth para criar "uma fantasia selvagem que combina um naturalismo bruto e hiper-realismo", disse Perez.
Jen Malone, a supervisora musical da série, também comandou a música das séries "Atlanta" e "Yellowjackets", nas quais um senso rigoroso de lugar e de época orientava as escolhas. Já em "Euphoria", essas limitações não existem.
"Se funciona, funciona", ela disse em entrevista, descrevendo o espírito criativo da série e apontando que Levinson ouve música enquanto escreve e frequentemente inclui suas escolhas musicais nos roteiros. "A biblioteca de música que ele tem no cérebro é infinita".
Ela e sua equipe são encarregados, mais tarde, de fazer da visão de Levinson uma realidade, oferecendo sugestões, buscando liberação de direitos dos detentores da propriedade intelectual sobre as músicas e cobrindo qualquer lacuna que o criador da série possa ter deixado.
Na segunda temporada de "Euphoria", prólogos para cada episódio que contam as histórias pregressas dos personagens funcionam como curta-metragens autônomos com tons e enquadramentos cronológicos distintos. Um deles salta de uma cover de Elvis Presley a Bo Diddley, Harry Nilsson, Curtis Mayfield e Isaac Hayes, e outro empilha faixas do INXS, Depeche Mode, Roxette, Erasure, Echo & the Bunnymen, The Cult, Lenny Kravitz e Dan Hartman, tudo isso no espaço de 15 minutos. "A quantidade de música que temos nessa série é completamente insana", disse Malone.
O que complica ainda mais as coisas é que "Euphoria" gira em torno de imagens cruas de transgressão –luxúria, abuso de substâncias e violência, especialmente– e as cenas precisam ser descritas em detalhe durante o processo de aprovação musical. "Temos de frasear certas coisas com inteligência, mas às vezes não há como contornar", disse Malone.
A sequência que envolve uma cover de Elvis, na abertura desta temporada, trazia nudez, drogas, armas e sangue– "todos os sinais de alerta que você poderia imaginar"—, e levou a algumas recusas antes que os produtores decidissem usar a cover de Billy Sway para "Don’t Be Cruel", depois de apelos à editora musical que controla os direitos da canção e ao espólio de Presley.
Para conseguir o uso de "Drink Before the War", de O’Connor, a equipe de "Euphoria" teve de confirmar que a canção não seria usada para cenas de violência sexual, "porque acho que ela conhecia a série".
Mas gravadoras e artistas apreciam o interesse que a colocação de uma faixa em "Euphoria" pode despertar, quer para uma cantora emergente como Laura Les, cuja canção "Haunted" estava na trilha de um episódio recente, quer para um artista estabelecido como Tupac Shakur, cuja cáustica "Hit ‘Em Up", de 1996, é acompanhada por um rap de um adolescente viciado em drogas na série. Faixas de Gerry Rafferty e do Steely Dan que fizeram parte da trilha de "Euphoria" começaram até a aparecer no TikTok.
Determinar se os personagens da série ouviriam ou não a música da trilha é um assunto que já gerou bastante debate e muito sarcasmo. ("O gosto dos adolescentes de ‘Euphoria’ para rap é ridículo", decretou o Pitchfork.) Mas, como no caso do guarda-roupa elegante da série, a verossimilhança não importa.
"O realismo é secundário", disse Perez, o editor. "Há um certo romantismo na abordagem" com "as novas complicações psicológicas dos mundos interiores" dos personagens assumindo a precedência.
A escolha de uma canção pode sinalizar alguma coisa, por exemplo no momento em que "Como La Flor", de Selena, toca ao fundo em uma cena que destaca um personagem cuja ascendência mexicana é mencionada, mas não discutida. Ou pode ser que a faixa simplesmente soe bem.
Na era das playlists, "a garotada antenada gosta de muita coisa", disse Labrinth, que espelha o alcance da série em suas composições originais "ilimitadas" para a trilha, combinando hip-hop, rock, funk e sons eletrônicos. Ele comparou Levinson a um DJ que busca raridades e pode referenciar uma banda punk da década de 1980 e um compositor italiano obscuro no mesmo set.
Para quem ainda não está ligado, "Euphoria" também pode funcionar como um motor de recomendações culturais para uma nova geração como mostram suas constantes menções a filmes de Martin Scorsese e Quentin Tarantino.
"Sabendo que nossa audiência é claramente a Geração Z, é quase como se estivéssemos dizendo ‘ei, pessoal, ouçam isso’", disse Malone, apontando que uma cena de festa em que faixas de Juvenile e DMX são tocadas também inclui música de artistas mais recentes e pouco conhecidos, como Blaq Tuxedo e G.L.A.M.
"Ah, você gosta dessas coisas que estão tocando agora? Experimente isso!", ela acrescentou. "Estamos dando a eles aquele ‘mixtape’ que ganhei quando estava no segundo grau".
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci