HUMOR: Na internet só tem retardado
Claro que esse título NÃO é verdade: longe de mim virar colunista polemicozinho a esta altura da vida. É só um teste pra ver quantas pessoas indignadinhas vão comentar sem nem ler o texto que vem abaixo. É também um plágio descarado da National Public Radio americana, que publicou no Facebook um texto intitulado "Por que a América não lê mais?" e recebeu um monte de comentários EU LEIO, SIM! de gente que não leu além do título –era uma brincadeira de 1º de abril. Melhor "como queríamos demonstrar" do mundo.
Mas, para além da brincadeira, o fato é que o mundo não lê mais e o Brasil nunca leu muito mesmo -nada sintetiza melhor o espírito do tempo do que o saudoso Chorão, único poeta ousado o bastante pra rimar "gimme o anel" com "go pro motel", dizendo "não faço música pra meia dúzia de feladaputa que lê livro". E talvez essa estimativa de meia dúzia seja otimista. Literatura parece uma perversão mais rara que a oculofilia, só que aceita socialmente -e os pervertidos em questão ADORAM falar desse costume feio, mostrar ao mundo que estão lendo etc. Mas é só barulho: junte toda essa gente que lê livro e você mal encherá uma kombi.
Acrescente a isso a internet, esse distrito da luz vermelha cheio de tentações, e você terá um quadro catastrófico pra pessoas com déficit de atenção, como eu. Em certo sentido, quem gosta de literatura deve dar graças a Deus por as redes sociais não terem surgido um ou dois séculos antes. Imagino Dostoiévski jogando Angry Birds compulsivamente, ou Balzac tomando litros de café e ficando acordado a noite toda não pra escrever a "Comédia Humana", mas pra papear no WhatsApp. E o Oscar Wilde, em vez de produzir as peças de teatro e "O Retrato de Dorian Gray", passaria o dia inteirinho no Grindr. Pensem só no que perderíamos.
Marcel Proust, por exemplo: em vez de desfiar a partir de um biscoito mergulhado no chá todos os sete volumes de "Em Busca do Tempo Perdido", abriria o livro com "durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Aí entrei no Facebook e danou-se". E a coisa toda terminaria aí. Vou mais longe: acredito que, em muito pouco tempo, além de termos uma Bíblia reescrita na "linguagem da internet" ("upa Jesus morreu brinks ele tá vivão"), várias obras literárias clássicas serão ADAPTADAS para refletir os novos tempos. Exemplos grátis abaixo:
"Hoje a minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Não entro no Facebook faz uns dias." (Albert Camus, "O Estrangeiro")
"Quando certa manhã Gregor Samsa despertou de sonhos intranquilos, descobriu que parecia uma barata na foto horrorosa em que foi tagueado no Facebook." (Franz Kafka, "A Metamorfose")
"Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu 1,47 m de altura e calçando uma única meia soquete na foto do blog de moda. Era Lola ao vestir os jeans desbotados nas selfies do Instagram. Era Dolly na escola, jogando Candy Crush durante as aulas. Era Dolores sobre a linha pontilhada do exame do Enem. Mas em meus braços sempre foi Lolita." (Vladimir Nabokov, "Lolita")
"Ninguém retuíta o coronel. Ninguém conversa com o coronel no WhatsApp. Ninguém visita o tumblr do coronel. Ninguém dá joinha pras fotos do coronel no Instagram." (Gabriel García Márquez, "Ninguém Escreve ao Coronel")
"Por que o imperador se ergueu tão cedo e de coroa solene se assentou em seu trono, à porta magna da cidade?/ Meu, tu não sabe o que aconteceu, os cara do Charlie Brown invadiram a cidade." (Konstantinos Kaváfis, "À Espera dos Bárbaros")
Em suma, como já escrevi mais de uma vez, não adianta brigar com o espírito do tempo, e o espírito do tempo parece achar que literatura é frescura: a barbárie é nóis. Então deixe viver, deixe ficar, deixe estar como está.
RUY GOIABA sabe que vão dizer que o texto desta coluna comprova o título e manda beijinho no ombro prazinimiga. "Se nem Jesus agradou todo mundo, não é eu que vai agradar" (PEREZ, Carla).
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