Factoides

HUMOR: A performance estética e simbólica do Alceu

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Meu amigo Alceu enlouqueceu. Alceu, um amigo meu, enlouqueceu. Enlouqueceu o Alceu, esse amigo meu.


Meio doido, ele sempre foi. Tanto que era a única criatura que conheço que lia tese acadêmica. Enquanto nós, pessoas normais, comprávamos livros pra emagrecer ou vencer na vida, ele vasculhava bibliotecas na PUSC e na FUC para devorar "A Influência de Virgulino Lampião na Arquitetura do Decassílabo de Oscar Niemeyer". Ou então "Dadaísmo e MST: Vanguardas Europeias e a Reforma Agrária no Terceiro Mundo".


Numa dessas, o cérebro do Alceu amoleceu. O clique aconteceu quando lia tese sobre o Black Bloc. Alceu entendeu que o Black Bloc é uma manifestação "artística" e "simbólica". Uma "performance", uma "estratégia espetacular de intervenção urbana".


A acusação de "violência e vandalismo" feita pela mídia "fedaputa" não se sustenta: a ação "se dirige às coisas, ao patrimônio público e não à integridade física das pessoas".


Entendam que o Alceu já andava trelelé. A mulher enchia o saco. O chefe o enchia de trabalho. A vida o enchia de contas. Não dava pé.


Numa segunda-feira, depois de três horas num trânsito congestionado, ele chegou ao escritório e viu sua mesa entupida de papéis. Foi falar com o chefe naquele momento e exigir aumento. O chefe, que tentava atravessar uma ressaca monstro, respondeu:

"Aumento, Alceu? Caia fora, fariseu! Faltou dinheiro? Problema seu!"

Crédito: Edson Aran


E foi aí que a mente do Alceu derreteu.

Não suportava mais aquela "brutal acumulação de riquezas e a impunidade dos segmentos sociais privilegiados". Resolveu que tinha que partir pra uma radical "performance simbólica antiglobalização". Pegou a camiseta da academia, que trazia na mochila, e enrolou no cabeção. Foi no quarto da faxina, arrumou um litro de álcool, jogou na mesa do chefe e tacou fogo.


O chefe saiu gritando e chamou a segurança. Alceu viu os agentes da repressão chegando e jogou grampeadores, bolas de papel, clipes e fitas durex. Arrancou um pedaço de Duratex pra servir de escudo, mas acabou levando cascudo. Foi dominado e demitido. Alceu virou bicho na defesa da ação. Reforçou o simbolismo e refutou o vandalismo. Na maior desenvoltura, denunciou aquela ditadura.


Saiu do prédio ainda com a camiseta enrolada no cabeção. Enquanto esperava o ônibus, depredou um orelhão. Tentou inutilmente derrubar um poste. Não conseguiu. O ônibus chegou. Alceu entrou e quis arrancar a catraca. Os passageiros reclamaram da fila que se formou. Como a catraca não se rendia, ele pagou, mas exigiu 20 centavos de troco, como a tese mandou.


Ao chegar ao destino, convocou os passageiros a tacar fogo no busão, mas o povo queria ir pra casa assistir à televisão. Então ele tentou virar o ônibus sozinho, para promover uma "estratégia espetacular de intervenção", mas o motorista acelerou e Alceu caiu de cara no chão.


Furioso, pegou o caminho de casa e foi chutando portas, paredes, portões, panificadoras e pedregulhos. Tudo estética. Tudo encenação. Tudo protesto antiglobalização, pensava o cabeção.


Quando chegou em casa, a Dona Encrenca o esperava de porrete na mão. Tinham ligado do escritório falando da depredação e da demissão. Alceu se defendeu:

"Mas, amor, eu sou um performático da ação direta simbólica e estou colocando o sistema em xeque!".


Alceu levou um tapão no pé do ouvido e foi posto pra fora de casa. A mulher diz que só o aceita de volta quando ele conseguir outro emprego com carteira assinada.


Alceu já foi na PUSC e já foi na FUC. Já foi até na DIU e na PQP. Só pra ver se arruma um servicinho onde possa continuar lendo teses para o bem do Brasil.

Mas tudo o que conseguiu foi virar objeto de novo trabalho acadêmico: "O Significante do Simbolismo Black Bloc e Sua Influência no Alceu, o Infeliz que Levou a Sério Aquilo Tudo que Leu".


EDSON ARAN é autor de cinco livros. O mais recente, "Delacroix Escapa das Chamas" (Editora Record), é uma sátira futurista passada na São Paulo de 2068. Foi diretor das revistas "Playboy", "Sexy" e redator-chefe da "Vip". É um tuiteiro compulsivo e sua conta é @EdsonAran.

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