Factoides

HUMOR: A conexão axé-music

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No capítulo anterior de "A volta dos Cangaceiros Mortos-Vivos": Nosso, hmm, herói, Ermenegildo Pinto, está convencido de que a temporada de protestos é uma mega-conspiração lesa-pátria. Ele convoca seus dois capangas, Raulzito e Bom Selvagem, e decide desvendar a trama ou morrer tentando. Para ler o Capítulo 1, clique aqui.

Raulzito empurrou a porta e entrou na minha sala. Quer dizer, primeiro entrou o maior baseado que eu já tinha visto na vida. Uma chaminé de papel de seda soltando uma fumaça mais densa que bomba de efeito moral. Atrás do cigarro vinha o Raulzito. Junto com ele estava o Bom Selvagem, usando as roupas tradicionais da tribo dele: Bermuda do Flamengo, chinelo havaiana e rayban falso de camelô.

"Pô, vocês demoraram pra cacete!", fui logo esculachando, enquanto dava uns pegas no baseado do Raulzito.

"Aí, bródi, tá o maior perrengue, tá ligado? O Movimento dos Caminhoneiros Pró-Pneu Careca bloqueou todas as estradas!"

Bom Selvagem deu sua contribuição:

"Avenida Paulista estar parada por causa briga Marcha Coxinhas Pró-Gordura Trans com Marcha Vegetarianos Radicais do Sétimo Dia!"

De cabeça mais leve, expliquei pros dois a enormidade da crise. Tudo estava conectado. O povo brasileiro marchando e andando, o golpe militar no Egito e o seqüestro do avião do Ivo Meirelles. Evo Maracas. Uevos Molhados. Enfim, o boliviano lá.

Bom Selvagem se invocou.

"Ermenegildo homem branco de língua bifurcada! Gigante acordar! Corrupção virar crime hediondo! Manifestação levar país pra frente!"

Resolvi dar uma aula básica de dialética pro guaraná-kamikaze:

"Aí, ô aritana... xarápi!"

Já os neurônios enevoados de Raulzito faziam conexões diferentes.

"Aí, mano, de repente, pá, tem a ver... essa é a mistura do Brasil com Egito! Tem que ter charme pra dançar bonito, tá ligado?"

Era isso. Raulzito tinha sacado tudo. Há anos a axé music vinha repetindo essa lenga-lenga. Beduíno e nordestino! Tuaregue e carne seca! Saara com Santo Amaro! Lampião e Tutankhamon! Existia uma evidente conexão entre Brasil, Egito e axé music.

Eu até já sabia quem estava por trás da terrível conspiração anti-gorda-do-laquê: Compadre Washington! Só podia ser ele.

"Senhores", eu disse, muito sério, "vistam seus abadás. Nós vamos pra Bahia!"

Crédito: Edson Aran/Folhapress


Quem perdeu o primeiro volume das minhas memórias políticas ("A Noite dos Cangaceiros-Mortos Vivos", à venda nas piores casas do ramo) deve estar perguntando aos seus botões: "E aí, botões, que cazzo é isso de cangaceiros mortos-vivos?"

Fiquem frios, botões. Eu explico.

Eu, Raulzito e Bom Selvagem constituímos o Comando Armado Revolucionário dos Cangaceiros Mortos-Vivos, o CARCA-MV.

Durante o dia, eu sou apenas um simples importador. Trago muamba de Miami pra vender nessas lojas que vocês frequentam. MegaShop. InterShop. ShopShop. FuckShop. Só sei que tem que ter "Shop" no meio.

Quando a noite cai, eu viro um líder revolucionário. Meu negócio é acabar com tudo isso que está aí e implantar o Cangaceirismo. Aí sim vocês vão ver o que é bom. Depois eu explico os postulados do movimento pra vocês poderem aderir. Por enquanto, é isso aí.

"E por que 'morto-vivo'?", perguntam os botões. Simples. As ideologias morreram. Ninguém acredita em mais nada, Esquerda, Direita, Comunismo, Pseudismo é tudo ideologia morta-viva. O Cangaceirismo também é. Tirando eu, Raulzito e Bom Selvagem, ninguém mais é cangaceirista. E mesmo assim o safado do gariroba-karateca está nessa só por dinheiro.

Por isso, nós somos os Cangaceiros Mortos-Vivos. E quem tem que desestabilizar a democracia somos nós, porra! Tá pensando o quê?


A gente estava na Associação Baiana de Ostensiva Subvenção ao Tropicalista Artístico (ABOSTA), um casarão do Pelô onde todo mundo vive junto. Caê. Gil. Gal. Cocô. Carlinhos Brown. Essas coisas.

Sentado sobre almofadas e abanado por dois ritmistas do Olodum, Caetano explicava para uma platéia de críticos de música extasiados "a função tropicalista do Bóson de Higgis na Bossa Nova de João Gilberto".

Noutro canto, Gilberto Gil dissertava sobre a "necessitude da praticância axézística numa governança culturalizante". Em outra parte, Carlinhos Brown, muito compenetrado, tentava inventar um atabaque. Ou um agogô. Um reco-reco. O que saísse primeiro.

Na nossa frente, muito preocupado, Compadre Washington tirava o corpo fora:

"Ôxe, ordinária! O tchan quer conquistar o país, mas é com alegria, num sabe? Não tô metido em conspiração não!"

Nem escutei. Estava mais interessado nas duas bundudas que rebolavam atrás dele enquanto ele falava. Por sorte, Raulzito e Bom Selvagem continuaram o interrogatório sem mim.

"Aí, mano compadre, pode parar com esse jorge-vacilo, tá ligado? Pode dar a letra aí senão fica pequeno procê!", falou Raulzito.

"Homem branco chamar índio 'ordinária' de novo e levar bordunada no pé do ouvido!", acrescentou o gororoba-carijó.

"Ôxe, ordiná... digo, ôxe, gente, eu nem acredito nessa bobagem de 'Brasil com Egito'. Foi só pra rimar com 'bonito'!"

Compadre Washington era inocente. Eu sabia. Nenhum cara que tem duas bundudas rebolando ao lado dele precisa tomar o poder. Mas eu ainda precisava falar com o Beto Jamaica.

Estava pensando esses troços dialéticos quando ouvimos um ruído irritante e estridente. Parecia o cruzamento de 100 maritacas no cio com uma sirene de ambulância. Era a Gal.

"Geeeeeeenteeeeeeee! Acudaaaaaaa!", ela berrava. "O Exército de Libertação da Cura Gay seqüestrou Daniela mais Malu! Precisamos fazer alguma coisaaaaa!"

Gil se antecipou:

"Vou conceder imediatamente entrevistança falando da politicação da causalidade!"

Caetano foi atrás:

"Vou escrever artigo sobre a tropicalidade pós-marxista do desejo!"

Carlinhos Brown deu sua contribuição:

"Aê aí aô aú aú aú aú!"

Eu não titubeei. Só dei uma olhada pra Raulzito e Bom Selvagem e eles sacaram tudo. Então me pronunciei:

"Teiquirísi, baianada! Deixa que a gente salva as gostosinhas!"

(CONTINUA)


EDSON ARAN é autor de cinco livros. O mais recente, "Delacroix Escapa das Chamas" (Editora Record), é uma sátira futurista passada na São Paulo de 2068. Sua série de cartuns "O Totalmente Dispensável Almanaque Inútil do Aran" é publicada mensalmente no "Folhateen". Ele foi diretor das revistas "Playboy", "Sexy" e redator-chefe da "Vip". É um tuiteiro compulsivo e sua conta é @EdsonAran.

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