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Maconha embala aula de ioga na Califórnia

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Este é o terceiro ano em que Liz McDonald dá um curso aos sábados intitulado "420 Remedy Yoga". O estúdio dela, "Brazilian Yoga", fica em Atwater Crossing, um centro boêmio próximo de Glendale, Califórnia. Como cortesia para seus alunos de Glendale, alguns dos quais podem estar perambulando em estado de graça, McDonald começa sua aula às 16h25.

O número 420 é código para "fumar maconha". O termo se originou em Marin County, no início dos anos 1970, quando um grupo de estudantes de ginásio se
reunia às 16h20 para começar a fumar seus baseados.

Naquela época, anos depois de Richard Alpert ter mudado seu nome para Ram Dass, os experimentos com drogas andavam de mãos dadas com a busca pelo ser/consciência/alegria, busca essa que é também um dos fundamentos da ioga e da meditação.

Num sábado recente, McDonald iniciou sua aula devagar. Os alunos se deitaram no chão, ao som de jazz relaxante com toques indianos, enquanto ela os
incentivava a imaginar que suas esteiras eram tapetes mágicos particulares.

Eles passaram algum tempo se alongando preguiçosamente, alguns deles olhando para as lanternas brancas penduradas das vigas, como se estivessem
apreciando pela primeira vez as qualidades etéreas do papel de arroz.

McDonald foi andando entre os alunos, ajustando as posturas deles com pressões suaves. Seu cachorrinho Prince a acompanhava; de vez em quando ele
imitava a dona, encostando seu focinho nos alunos.

Uma hora e meia mais tarde a aula terminou com a tradicional "postura do cadáver", em que os alunos ficam deitados de bruços, com as palmas para cima, e parecem unir-se ao chão debaixo deles.

Os praticantes de ioga que curtem deixar seus pensamentos voar longe e que vivem no Colorado e no Estado de Washington, cujos eleitores recentemente
aprovaram a legalidade da maconha em doses pequenas para uso recreativo, podem começar a ver outras aulas como a de Liz McDonald. (A posse de maconha ainda é um delito federal, de modo que o período atual é de transição complexa.)

Em 2003, a Lei 420 do Senado da Califórnia aprovou a droga para finalidades médicas. Os alunos de McDonald podem ter licenças médicas para usar maconha, que podem ser obtidas sem dificuldade para problemas como ansiedade, desordens do sono ou dor crônica.

É ilegal fumar no imóvel da "Brazilian Yoga"; logo, o que se espera dos alunos é que o façam antes da aula, em casa.

A maconha é cultivada há milhares de anos. "Pelo menos alguns dos mestres da antiguidade provavelmente viviam chapados", comentou Leslie Kaminoff,
professor de ioga em Manhattan e autor de "Yoga Anatomy". Embora ele não use drogas nem dê aulas sob o efeito de qualquer tipo de substância, Kaminoff
observou que "as drogas podem ser uma ferramenta, e toda ferramenta possui um aspecto positivo e um negativo".

No entanto, com a exceção de grupos marginais compostos de pessoas como Liz McDonald, a maioria dos professores de ioga dirá que as drogas não têm lugar na prática da ioga.

"Uma das coisas que a ioga nos ensina é como tolerar a realidade, mesmo através de algo tão simples quanto manter uma postura incômoda", explicou a professora particular de ioga Nancy Romano, de Los Angeles. "Portanto, qualquer substância que atrapalhe nossa capacidade de estar dentro do que está acontecendo de fato não seria boa numa prática de ioga."

Quando criança, Liz McDonald, 34 anos, tinha uma escoliose grave. Hoje, graças à prática da ioga, ela é capaz de contorcer-se de várias maneiras e
ficar equilibrada sobre uma perna só, na postura da "ave-do-paraíso".

Ela tem consciência de que muitos professores de ioga desaprovariam sua aula 420, mas não se importa. "Acho a maconha uma ferramenta valiosa para o
ensino", ela comentou. "O maior obstáculo que enfrento é a descrença. As pessoas não acreditam que são capazes de sentir seu coração bater ou que
podem enviar a respiração para seus membros inferiores. Um pouco de maconha as relaxa e elas conseguem compreender. E, se você quiser ficar apenas
deitado em minha aula, tudo bem também."

William Sands, reitor da Faculdade de Ciência Védica Maharishi na Universidade Maharishi de Administração, em Fairfield, Iowa, representa a
oposição intransigente. Ele acaba de escrever um livro sobre Maharishi Mahesh Yogi, que foi mentor dos Beatles e levou a meditação transcendental
ao Ocidente. Sands disse que "a maconha inibe a capacidade de vivenciar a ioga --o eu interior-- e, portanto, é incompatível com a prática da
meditação transcendental". Para ele, a ioga é o pacote completo: uma disciplina física e mental.

Outros traçam a distinção entre o tipo de disciplinas necessárias para a ioga e para a meditação.

Liz McDonald falou que entende por que determinados iogues desaprovam a junção de ioga e maconha. "Algumas pessoas literalmente dedicaram suas vidas
à ioga", ela disse. "Por isso, elas a vêem como um ideal, algo que transcende as falhas humanas, algo que é capaz de ser nossa salvação. Eu
acredito que a perfeição é encontrada quando se está autenticamente no momento presente, e não como fruto da iluminação. Portanto, não tenho medo
de admitir que não sou perfeita e não tenho medo de sair do armário em relação a estes assuntos."

Dee Dussault, de San Francisco, é outra instrutora rara que anuncia o que ensina, que, no caso dela, é a Ganja Ioga. Dussault identifica em Buda, que advogava a pureza, a origem da distinção entre o que ela chama de ioga tântrica e ioga direta. "A ioga tântrica diz que você deve usar as
ferramentas que estiverem disponíveis para chegar à transcendência", ela explicou, acrescentando uma condição: que a maconha seja usada "com
consciência".

A ioga e o consumo de ervas estão vinculados desde a antiguidade. Os sutras da ioga, escritos em sânscrito antes da era de Cristo, são vistos como o
texto fundador da prática.

Os sutras citam as ervas como um dos cinco métodos que podem ser usados para erguer o véu da ignorância, ou seja, a barreira entre o consciente e o inconsciente. Mas William Sands expressou ceticismo, dizendo que as "ervas" em questão poderiam ser algo tão pouco polêmico quanto o cardamomo. "As pessoas que interpretam as 'ervas' dos sutras como sendo maconha estão buscando um argumento para justificar o que querem", disse ele.

Contudo, Mark Haskell Smith, romancista e autor do livro de não ficção "Heart of Dankness: Underground Botanists, Outlaw Farmers, and the Race for
the Cannabis Cup", tem certeza que os sutras não fazem alusão ao cardamomo. Praticante de ioga há 20 anos, Smith disse que ocasionalmente fuma maconha quando faz ioga. Quando o faz, contou, "consigo mergulhar mais fundo nos ássanas", ou posturas.

"Parte do objetivo da ioga é relaxar o corpo", ele comentou. "E a maconha ajuda muitas pessoas a relaxar."

Tradução de CLARA ALLAIN

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