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Autor de livro sobre a raiva diz que vírus pode ter inspirado mitos de vampiros e zumbis

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"Vacinem seus bichinhos de estimação contra a raiva", alerta o jornalista Bill Wasik, que hoje se alinha entre os grandes conhecedores da doença no mundo.

Apesar de não ser cientista nem veterinário, ele se dedicou durante dois anos a pesquisas sobre a hidrofobia (como também é designada a raiva), investigando tanto seus aspectos médicos quanto psicossociais --"O terror provocado pela raiva é desproporcional às mortes que causa", lembra o autor.

O resultado é o curioso volume "Rabid: A Cultural History of the World's Most Diabolical Virus" (Raivoso: uma história cultural do vírus mais diabólico do mundo), lançado em julho passado nos Estados Unidos. Wasik e a mulher, a veterinária Monica Murphy, mostram como a cultura popular, ao longo dos séculos, foi influenciada pelo (pouco) que se sabia dessa doença.

A obra também trafega pela evolução da pesquisa científica e comenta métodos de combate e prevenção da doença. Mostra casos recentes e chega até mesmo a episódios ocorridos no Brasil no século passado, fazendo enfim um balanço da situação da doença.

"A raiva ainda causa hoje enorme sofrimento no mundo todo, sendo responsável por cerca de 55 mil mortes por ano, atingindo crianças desproporcionalmente", diz Wasik nesta entrevista exclusiva realizada por e-mail.


Folha - Como surgiu a ideia de escrever o livro?

Bill Wasik - Monica é veterinária e volta e meia me contava histórias de casos de raiva. Ela nunca chegou a tratar nenhum caso, mas leu muito a respeito de como essa doença ataca o cérebro --ela muda o comportamento da pessoa para que o vírus possa se espalhar. Para mim, a raiva parecia ser uma espécie de possessão e, quando fui pesquisar a respeito, descobri que em muitas línguas e culturas a palavra raiva ("rabid", "lyssa", "rage") tem exatamente essas conotações sobrenaturais. Então pareceu um projeto bacana para nós dois fazermos juntos. Monica era obcecada pelos aspectos científicos, eu estava obcecado pelas implicações culturais.

Como foi o trabalho de pesquisa e a produção do livro a quatro mãos?

A produção do livro nos tomou cerca de dois anos. Nós fizemos algumas viagens para pesquisas para o livro ao laboratório de Louis Pasteur em Paris, à basílica de santo Humberto na Bélgica, a Bali (onde houve recentemente uma epidemia de raiva), a Milwaukee etc. Além disso, investimos muitas horas em pesquisas na biblioteca da Universidade da Califórnia em Berkeley, onde nós moramos.

Como vocês dividiram o trabalho? Jornalistas costumam preferir escrever sozinhos...

Nós fizemos uma divisão de trabalho bem parelha. Monica escreveu os capítulos de caráter mais científico, como os sobre Pasteur, a epidemia em Bali e o Protocolo de Milwaukee, que é um novo tratamento experimental para a raiva, enquanto eu fiquei com os de caráter mais histórico e cultural. Foi uma colaboração legal, pois Monica é mais focada na ciência e eu, na narrativa. Deu para editarmos os textos um do outro sem ferir suscetibilidades.

Qual a importância da raiva hoje, tanto no Primeiro Mundo quanto nos países subdesenvolvidos?

A raiva ainda causa hoje enorme sofrimento no mundo todo, sendo responsável por cerca de 55 mil mortes por ano, atingindo crianças desproporcionalmente. A grande maioria desses casos ocorre na Ásia e na África, onde a doença ainda hoje é prevalente. No resto do mundo, incluindo a maior parte da América Latina, a raiva ainda é um problema sério dos locais mais distantes ou selvagens, mas, com o sucesso no controle da raiva canina, são raras as mortes de humanos.

No livro, vocês citam algumas vezes o Brasil. Chegaram a visitar o país? Têm alguma avaliação do estágio do combate à raiva aqui?

Não, não visitamos o Brasil. Mas o grande trabalho encabeçado pela Organização Pan-Americana de Saúde nas últimas duas décadas reduziu a taxa de incidência de raiva canina a níveis muito baixos e, consequentemente, a incidência de raiva em pessoas.

Crédito: Divulgação Bill Wasik e Monica Murphy, autores do livro Rabid
Bill Wasik e Monica Murphy, autores do livro Rabid

Seu livro também fala de muitas superstições envolvendo a raiva ao longo dos séculos. Isso ainda persiste?

Sim! Como nós dizemos no livro, há uma tendência de as zoonoses --doenças transmitidas ao homem por animais-- provocarem reações supersticiosas. Por exemplo, quando ocorreu a pandemia da gripe suína, muitas nações muçulmanas trataram de exterminar os porcos, ainda que as autoridades sanitárias internacionais afirmassem que não havia perigo em mantê-los. Outro caso: como se acredita que a Aids tenha vindo de macacos, há em todo o mundo superstições que sobre as primeiras transmissões terem ocorrido em relações sexuais de humanos com macacos --a hipótese científica, porém, é que a transmissão ocorreu em algum momento quando homens matavam macacos para comer.

No aspecto cultural, seu livro argumenta que a raiva pode ter inspirado a criação de personagens como os vampiros e os zumbis... Dessa turma, qual a sua figura favorita?

É difícil dizer com certeza que a raiva inspirou a criação desses personagens, mas o fato é que os mitos sobre vampiros de meados do século 19 apresentam características muito semelhantes às de cães e humanos atingidos pela doença. De todos eles, acho que meu preferido é Varney, o Vampiro, que foi criado em meados do século 19 [o livro está disponível gratuitamente aqui ]. Ele foi o primeiro vampiro a ter características que remetem à raiva: tinha presas afiadas, como as dos cães, e sua mordida era contagiosa, provocando a criação de outros vampiros.

Mas o senhor vê características da doença em vampiros com problemas amorosos e existenciais como os da série "Lua Nova"? Eles certamente não são do mesmo time de Drácula...

Realmente, é difícil considerar que os vampiros de "Lua Nova" sejam muito raivosos. Hoje em dia, são nos mitos dos zumbis --os mortos-vivos-- que aparecem as principais características de seres atingidos pela raiva. De fato, alguns dos mais recente filmes sobre zumbis apontam um vírus semelhante ao da raiva como causa da transformação. Danny Boyle, o diretor de "Extermínio", disse ter se inspirado no vírus da raiva para criar o vírus dos zumbis.

Considerando a pesquisa que vocês fizeram, qual é sua avaliação da situação da raiva no mundo?

A prioridade hoje é (ou deveria ser) vacinar os cachorros na Ásia e na África, num esforço para reduzir ou mesmo eliminar a raiva canina. Como mostramos no capítulo sobre a epidemia em Bali, pode ser muito difícil convencer governos de nações mais pobres a investir recursos da saúde pública no tratamento de animais e não de pessoas! Mas vacinar os cachorros hoje significa que menos pessoas vão morrer amanhã. Então a forma melhor e mais barata de proteger as pessoas é vacinando os animais.

Deveria haver uma guerra mundial contra a raiva?

Com certeza. A raiva não é uma grande causa de mortandade, comparada com outros problemas de saúde, como a má nutrição ou o cólera, mas é muito fácil de ser prevenida. De fato, ao longo da história, a raiva nunca foi uma grande matadora de gente, mesmo antes de Pasteur ter inventado a vacina. Ela sempre provocou nas pessoas um terror desproporcional às mortes que efetivamente causou.

O senhor acredita que seu livro possa ser um alerta contra a raiva?

Com certeza, esperamos que sim! Todos devem vacinar seus bichinhos de estimação. Os gatos também precisam ser vacinados, pois eles, como os cães, podem transmitir raiva.

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