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Infiltração sobre túmulo de Machado de Assis chama atenção para degradação de mausoléu da Academia Brasileira de Letras

OUTRO LADO: ABL diz que jazigo teve manutenção prejudicada pela pandemia e está sendo restaurado

Mausoléu da Academia Brasileira de Letras degradado; detalhe da infiltração em cima do túmulo de Machado de Assis
Infiltração em cima do túmulo de Machado de Assis, assim como em várias paredes do mausoléu - Karla Vasconcelos / Arquivo pessoal
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Rio de Janeiro

Após uma pausa de cerca de dois meses, a rotina dos imortais da Academia Brasileira de Letras será retomada na próxima quinta-feira (2). É a data marcada para o primeiro chá da tarde de 2023. A folclórica reunião semanal, na qual bolos, sanduichinhos e frutas (sem caroço, para evitar engasgos) são servidos em pratos de porcelana inglesa e talheres de prata, será sucedida por uma "sessão da saudade" em dose dupla.

O evento fúnebre é uma homenagem dos imortais aos colegas que se foram, uma despedida. Logo depois, vida que segue: a vaga do falecido é declarada oficialmente aberta à disputa. Como houve duas perdas durante o recesso (Nélida Piñon e Cleonice Berardinelli, em dezembro e janeiro, respectivamente), há um par de cadeiras em jogo. Convites, costuras e alianças dos possíveis candidatos começaram a acontecer, discretamente, logo após a morte de Piñon, 85, e Dona Cleo, 106. Mas, afinal, o que querem os postulantes a um dos 40 fardões da Academia?

Além do prestígio e do ambiente intelectual, há outros benefícios oferecidos aos seus imortais. Entre eles, um ótimo plano de saúde e um bem-vindo afago financeiro (antes da pandemia, a cada chá os presentes embolsavam um jeton de R$ 1.000, além do salário fixo de R$ 3.000). Por último, mas não menos importante, todos eles têm, literalmente, onde cair mortos: em um túmulo no mausoléu da Academia, no cemitério São João Batista, na zona sul do Rio. Outrora imponente, ele está em estado lastimável.

O teto sob onde repousam os restos mortais de Machado de Assis e de sua mulher, Carolina, está com infiltrações e ameaça desabar. Fios expostos, poeira, mofo, túmulos sem lápides ou com os nomes errados, banheiro em condições precárias, madeiras carcomidas... É vasto o repertório de evidentes provas de descuido com os "imortais" depois que eles morrem.

Integrante da Academia há 33 anos, o poeta Carlos Nejar, 84, não costuma frequentar os enterros de seus confrades ("Não é o tipo de passeio de que gosto") e, por isso, não viu in loco como andam as coisas por lá. Ao receber pelo WhatsApp as fotos publicadas nesta reportagem, não se conteve: "Estou horrorizado", disse. "É um espetáculo terrível, muito triste, mas tenho certeza que o presidente Merval [Pereira] vai tomar as devidas providências, ele é muito dinâmico".

Dinheiro não deve ser o problema. A Academia, que se define como uma "organização privada sem fins lucrativos" sustenta-se financeiramente com os aluguéis de dezenas de imóveis próprios na região central do Rio. Somente o Palácio Austregésilo de Athayde, a joia da coroa no patrimônio da entidade, concentra 300 salas comerciais em seus 29 andares.

Passada a pandemia, quando o home office esvaziou o centro da cidade e deu uma baqueada no caixa da ABL, tudo parece ter voltado à normalidade na conta bancária da instituição. "Mesmo se não estivesse tudo bem, não há crise econômica que explique essa degradação", ralha Nejar, que, mais uma vez, afirma acreditar que a atual gestão vai restaurar o mausoléu. "Lá é o lugar natural do sepulcro dos acadêmicos mas eu não sabia que meu destino estava tão deteriorado", preocupa-se.

Pós-graduado em Literatura Brasileira pela PUC-RS e especialista na obra de Machado, Thomas Giulliano Ferreira dos Santos foi um dos primeiros a denunciar o estado de penúria do mausoléu onde estão enterrados nomes como Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Darcy Ribeiro, Ferreira Gullar e Otto Lara Resende, entre outros.

Em 2020, ele recebeu fotos do túmulo do autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e ficou impressionado. À época, a infiltração no teto não existia. O problema era outro: a lápide estava banguela. Faltavam algumas (muitas) letras no nome do fundador da Academia, no nome de Carolina, e também na breve biografia dos dois.

Giulliano fez então "uma campanha de pressão" nas redes: compartilhou as imagens do túmulo deteriorado e marcou a página oficial da ABL. Uma chuva de comentários, irados com o descaso que saltava aos olhos de quem via as imagens, fez com que o problema, aparentemente simples de resolver, fosse assunto de uma reunião dos imortais, que decidiram consertar o estrago.

Nome na lápide, o bê-á-bá de qualquer enterro, parece ser um problema recorrente no mausoléu da Academia Brasileira de Letras. Morta em dezembro passado, Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a casa, foi sepultada com o nome de outra pessoa. No dia de seu funeral, constava sobre seu caixão a identificação de Lêda Boechat Rodrigues, viúva do historiador e acadêmico José Honório Rodrigues, morto no longínquo ano de 1987.

"É muito desrespeito", indigna-se Karla Vasconcelos, assistente pessoal de Nélida por 15 anos e responsável legal por todo o seu acervo e patrimônio. "Me segurei para não fazer um escândalo na hora do enterro, mas depois quebrei o pau internamente", conta. A lápide errada foi então retirada, mas ainda não há uma placa com o nome da ex-presidente sobre o seu caixão. Quanto mais fala sobre o assunto, mais Karla se revolta. "Nélida Piñon, presidente da Academia no ano de seu centenário, foi atirada ao limbo e está numa vala como uma indigente, sem sequer ter seu nome gravado na sua própria lápide".

Assim como Nejar, a assistente e grande amiga de Nélida diz que não quer briga com a Academia -desde que a memória da escritora seja respeitada. "As pessoas fazem de tudo para entrar na ABL e depois são jogadas lá naquele mausoléu descuidado? O que é isso? Enterrar seus mortos com dignidade é um ato civilizatório", diz Karla, que já tomou uma decisão.

Se a atual gestão não restaurar o túmulo onde estão Nélida e seu cachorro, os restos mortais dos dois serão transferidos para fora do mausoléu, dentro do mesmo cemitério São João Batista. "Já estou vendo o preço", informa. Aqui cabe um parêntese: os acadêmicos são enterrados ao lado de seus companheiros e Piñon, solteira, optou pelo sepultamento junto a Gravetinho, o cão que ela tinha como filho. "Se eu pudesse, tiraria os dois de lá agora mas, pela lei, só é permitido daqui a três anos", resigna-se Karla.

Procurada pelo F5, a ABL diz que o jazigo teve sua manutenção prejudicada pela pandemia e que já está sendo restaurado.

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