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Descrição de chapéu BBC News Brasil Coreia do Norte

Desertor gay foge da Coreia do Norte e descobre amor aos 62 anos

Aos 62 anos, Jang encontrou o amor e vai se casar com namorado americano
Aos 62 anos, Jang encontrou o amor e vai se casar com namorado americano - BBC News Brasil/Oh Hwan
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Julie Yoonnyung Lee
BBC News Brasil

A história do único desertor abertamente homossexual da Coreia do Norte foi coberta pela imprensa internacional quando ele publicou sua autobiografia. Agora, 25 anos depois de fugir de seu país, ele conta à BBC sobre seus planos de se casar com o namorado americano.

Jang Yeong-jin nunca sentiu atração por mulheres. Mas foi só na noite de núpcias, aos 27 anos, que isso passou a ser um problema em sua vida. Jang se sentiu intensamente desconfortável.

"Eu não conseguia sequer encostar na minha esposa", lembra. Embora o casal tenha finalmente consumado o casamento, sexo era algo raro.

Quatro anos depois, a esposa não havia engravidado e um dos irmãos de Jang começou a investigar o casal. Jang admitiu que nunca se havia se sentido atraído por mulheres e foi rapidamente encaminhado pelo irmão a um médico.

"Fui a muitos hospitais na Coreia do Norte porque eu achava que tinha um problema." Nunca ocorreu a Jang, ou a sua família, que poderia haver outro motivo para sua falta de interesse na esposa.

PROVAS MÉDICAS

"A homossexualidade não existe como conceito na Coreia do Norte", ele diz. No país, adultos do mesmo sexo costumam ser vistos de mãos dadas na rua independentemende de sua sexualidade, explica ele. "A Coreia do Norte é uma sociedade totalitária."

Olhando para trás, Jang vê hoje que não foi o único a ser mal compreendido. Quando foi internado no hospital por um mês para exames, ele conheceu outros pacientes com casos similares.

"Descobri que muitos tiveram uma experiência semelhante: homens que não sentiam nada por uma mulher." Mas explorar o que eles realmente sentiam era quase impossível. "Na Coreia do Norte, se um homem diz que não gosta de uma mulher, as pessoas pensam que ele está doente."

Um homem que Jang havia conhecido no Exército o visitou várias vezes depois que ele recebeu alta. O rapaz um dia confidenciou que sua noite de núpcias também havia sido um desastre, e que ele não conseguia nem segurar a mão da esposa. "Acho que era alguém como eu", diz Jang.

Park Jeong-Won, professor de direito da Universidade Kookmin em Seul, na Coreia do Sul, diz que não tem conhecimento de nenhuma lei explícita na Coreia do Norte contra relacionamentos gays. Mas ele acrescenta que leis contra casos extraconjugais e violação dos costumes sociais provavelmente seriam usadas para processar atos homossexuais.

Outra estudiosa em Seul, Kim Seok-hyang, entrevistou dezenas de desertores e disse que nenhum jamais tinha ouvido falar do conceito de homossexualidade. "Quando perguntei sobre a homossexualidade, eles tiveram dificuldade em entender. Então, tive que explicar a cada um", diz Kim, professora de Estudos Norte-coreanos na Ewha Women's University.

Todos os desertores confessaram que, se fossem pegos em relacionamentos com pessoas do mesmo sexo, seriam condenados ao ostracismo e possivelmente até executados. Jang foi solto sem nenhuma observação no seu histórico médico. Todos os exames médicos solicitados por seu irmão mostraram que não havia nada de errado com ele.

A DECISÃO DE FUGIR

Mas a esposa de Jang seguia infeliz. "Eu estava pensando: 'eu deveria deixar essa pessoa ir embora, deveríamos encontrar uma maneira de sermos felizes'", diz o desertor.

Jang então pediu o divórcio. No entanto, esse processo não é fácil na Coreia do Norte. É necessário conseguir uma permissão de um tribunal, e as cortes priorizam a unidade familiar, diz o professor de direito Park Jeong-Won.

Eles só autorizam a separação se o casamento for visto como uma ameaça à ideologia do país, explica. Foi então que Jang percebeu que só tinha a opção de fugir. Deixar a Coreia do Norte anularia automaticamente o casamento e permitiria que sua esposa se casasse novamente.

Mas o catalisador para sua decisão foi a visita do melhor amigo de Jang, um homem chamado Seoncheol. Eles cresceram juntos na cidade de Chongjin, no norte. Eram muito próximos e dormiam na mesma cama quando um ficava na casa um do outro durante a infância.

Quando cresceram, os sentimentos de Jang por Seoncheol se intensificaram. "Eu realmente gostava muito de Seoncheol. Eu ainda sonho com ele."

Às vezes, Seoncheol o visitava para jantar. Certa noite, preocupado com o quão tarde estava, Jang persuadiu Seocheol a passar a noite ali. Algumas horas depois, Jang saiu da própria cama e se aproximou de Seoncheol. Ele ficou arrasado quando seu amigo adormecido nem se mexeu.

"Eu não sei exatamente o que eu queria dele, talvez apenas que ele me abraçasse forte", diz Jang. Aquele momento o fez sentir que sua vida na Coreia do Norte estava chegando a um fim.

A FUGA

Jang chegou à Coreia do Sul em abril de 1997 rastejando pela zona desmilitarizada cheia de minas que divide as duas nações. Cruzar a área é tão arriscado e raro que sua fuga ganhou manchetes no sul.

A dinâmica em Seul era muito diferente da da Coreia do Norte, mas mesmo aqui o caso de Jang intrigou autoridades sul-coreanas. Todos os desertores norte-coreanos passam por várias semanas de interrogatório obrigatório pelo Serviço de Inteligência da Coréia do Sul (NIS) para verificar se não são espiões.

Jang foi interrogado por mais de cinco meses porque relutava em explicar a verdadeira razão pela qual desertou. Quando ele finalmente admitiu que simplesmente não estava atraído por sua esposa, foi autorizado a ficar, mas foi novamente enviado ao médico.

Naquela época, mesmo na Coreia do Sul, havia pouca consciência sobre as diferentes orientações sexuais. Vários médicos recomendaram que ele procurasse ajuda psicológica, mas ele ignorou os conselhos.

DESCOBERTA E DECEPÇÃO

Então, na primavera de 1998, 13 meses depois de chegar à Coréia do Sul, Jang abriu uma revista para ler uma entrevista que havia dado sobre sua deserção. Virando a página, ele descobriu um artigo sobre gays saindo do armário, com uma cena de um filme americano mostrando dois homens se beijando na cama.

Logo ele se convenceu de que também era homossexual. "Quando vi isso, soube imediatamente que eu era esse tipo de pessoa. É por isso que não gosto de mulheres."

Essa revelação transformou a vida de Jang, que se tornou um frequentador assíduo dos bares gays em Seul. Mas, anos depois, esse novo mundo levou Jang a cair em um golpe devastador.

Em 2004, o dono de um dos bares favoritos de Jang o apresentou a um comissário de bordo. Eles namoraram por três meses e Jang se apaixonou.

O comissário de bordo pediu a Jang que morassem juntos, mas explicou que, como morava com o padrasto, eles primeiro teriam que comprar uma casa maior. Jang saiu de seu apartamento alugado e deu a ele US$ 82 mil (R$ 450 mil em valores atuais) de suas economias e todos os seus pertences.

Ele nunca mais o viu. Jang foi à delegacia todos os dias durante duas semanas, até que lhe disseram para desistir. Ele diz que nunca pensou que alguém pudesse enganá-lo assim. "Na Coreia do Norte, temos uma vida muito controlada. Se eu dissesse que alguém me enganou, o partido o teria rastreado e punido severamente."

Jang ficou doente e foi hospitalizado por um mês. Achou que fosse estresse. Isso significou perder o emprego em uma fábrica. Como resultado, ficou sem dinheiro, sem teto e desempregado. Aos poucos, ele foi reconstruindo sua vida. Conseguiu um emprego como faxineiro, economizou para alugar uma casa nova e começou a escrever nas horas vagas.

Quando criança, ele havia vencido um concurso de redação. O tema do texto era uma homenagem ao regime norte-coreano. Agora, finalmente, Jang poderia escrever o que quisesse. Sua autobiografia "A Mark of Red Honor" ("Uma Marca de Honra Vermelha", em tradução livre, sem versão no Brasil) foi publicada em 2015.

ENCONTRAR O AMOR

Demorou muito até que Jang se arriscasse a sair de novo com alguém. No ano passado, aos 62 anos, Jang conheceu Min-su*, dono de um restaurante, em um site de namoro. Quatro meses depois, Jang viajou para a nação que conhecia como "o país dos lobos", o termo depreciativo de Pyongyang para os Estados Unidos.

Quando Jang viu Min-su esperando por ele no saguão de desembarque, teve uma decepção. Min-su usava short e boné. "Vendo como ele se vestia, achei que era um homem mal-educado e rude", disse Jang.

O confinamento do coronavírus fez com que se conhecessem melhor, bebendo vinho e fazendo piqueniques. "Quanto mais eu o conhecia, mais eu podia ver seu bom caráter. Embora ele seja oito anos mais novo, é o tipo de pessoa que se preocupa primeiro com os outros."

Depois de dois meses, Min-su decidiu propor a Jang que se casassem. Agora Jang está finalizando seus documentos para provar que seu casamento na Coreia do Norte acabou. Eles esperam se casar ainda este ano.

"Sempre me sentia assustado, triste e solitário quando morava sozinho. Sou muito introvertido e sensível, mas ele é uma pessoa otimista. Fazemos bem um ao outro", afirma. Mas, apesar de sua felicidade recém-descoberta, Jang continua assombrado pelo impacto que sua deserção teve em sua família.

Vários de seus parentes foram exilados para um vilarejo remoto no norte gelado, um destino brutal para aqueles cujos parentes são considerados desleais ao regime. Seis de seus parentes morreram de fome e doenças, incluindo sua mãe e quatro de seus irmãos.

Jang diz que a única maneira de lidar com essa culpa é escrevendo. "Sempre que penso na minha família é muito doloroso para mim, então decidi escrever. Acho que é a única maneira de recompensá-los", reflete.

Mas pelo menos o conforta que sua decisão de deixar a Coreia do Norte tenha dado novas oportunidades para sua antiga esposa. Ele soube que ela se casou novamente. "Sempre achei que ela era muito boa, por isso fiquei muito feliz por ela."

E ele diz que espera expandir seus horizontes assim que as restrições ao coronavírus forem relaxadas e pretende visitar Washington, a meia hora de carro, com Min-su. "Ouvi dizer que há muitos bares gays lá. Quero ir a esses bares com ele."

Enquanto isso, ele diz que gosta da tranquilidade dos subúrbios, que descreve como sendo um "conto de fadas".

(*) O nome verdadeiro foi alterado a pedido do entrevistado.

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