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A polêmica estratégia do vídeo 'racista contra o racismo' que viralizou nas redes

Flor e Junior revelaram que vídeo que viralizou foi uma encenação para divulgar um projeto deles
Flor e Junior revelaram que vídeo que viralizou foi uma encenação para divulgar um projeto deles - Reprodução/Arquivo pessoal
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São Paulo
BBC News Brasil

Um vídeo que mostra uma jovem sendo vítima de um ataque racista viralizou no último fim de semana e causou polêmica nas redes sociais. "A menina que faz faxina aqui em casa vem aqui e fica cantando alto pra caralh*. E ainda fala que quer ser cantora. É gorda, preta de cabelo duro...", diz o rapaz, pouco antes de filmar a jovem lavando louças e cantando.

O caso gerou revolta após ser divulgado na internet, na noite de sexta-feira (6). O vídeo, que tem 24 segundos, foi compartilhado em diversas páginas e viralizou. Somente no Instagram foram mais de 2,3 milhões de visualizações, enquanto no Twitter foram mais de 700 mil.

Um dia depois da repercussão do vídeo, os responsáveis pela gravação se pronunciaram e revelaram que a filmagem foi uma encenação para divulgar um projeto para ajudar a combater diferentes tipos de preconceitos.

"A Flor não trabalha como diarista na minha casa. Foi uma cena que criamos para o vídeo viralizar mesmo, porque temos coisas que gostaríamos de falar para as pessoas, mas não temos voz porque não somos conhecidos na internet", afirma Junior Launther, de 22 anos, que é ator.

"A gente achou que o vídeo poderia repercutir, mas não imaginou que fosse tanto", diz a jovem Elisama Alves da Silva, mais conhecida como Flor, de 20 anos. Ela trabalha como atendente de telemarketing, já fez trabalhos como atriz e sonha em se tornar cantora.

A grande maioria das pessoas criticou a dupla, após a justificativa sobre o vídeo. A maior parte dos comentários nas redes sociais dos jovens classifica a gravação como uma estratégia infeliz para divulgar um trabalho. "Já começou errado. Gordofobia e racismo não são motivos de brincadeira", diz um dos milhares de comentários sobre o assunto.

Desde que compartilharam o vídeo nas redes sociais, os jovens admitem que se perguntaram por diversas vezes se o vídeo foi uma boa estratégia. "Já nos questionamos 10 milhões de vezes se fizemos o certo. Mas acredito muito no potencial disso. Vamos lançar outros vídeos para falarmos sobre preconceito. Acredito que essas pessoas que estão criticando agora vão mudar de opinião quando assistirem aos outros vídeos do projeto", afirma Junior.

Ao todo, segundo os jovens, o projeto deverá ter mais sete vídeos. O último será lançado em 20 de novembro, um videoclipe da música intitulada "Me Respeita". "A canção será divulgada no Dia da Consciência Negra porque aborda o racismo, além de outros preconceitos como a homofobia e a gordofobia", diz Flor.

Dupla afirma que fez o vídeo em razão do projeto 'Me Respeita', criado para tratar sobre diferentes tipos de preconceitos
Dupla afirma que fez o vídeo em razão do projeto 'Me Respeita', criado para tratar sobre diferentes tipos de preconceitos - Arquivo pessoal

O VÍDEO COM O ATAQUE RACISTA

Os jovens, que são amigos há seis anos, pensaram na melhor estratégia para divulgar a canção que haviam escrito contra diferentes tipos de preconceitos. Eles, que moram em Campinas (SP) e já fizeram cursos de teatro na cidade, decidiram fazer uma série de vídeos para impulsionar o lançamento da música.

Eles contam que queriam uma forma de causar impacto logo no primeiro vídeo. "O Junior é homossexual e passou por muito preconceito por isso. Pensamos em abordar algo nesse sentido logo de início. Mas por eu ser preta e o racismo ter sido muito falado em 2020, pensamos que seria a melhor forma para começarmos a falar sobre respeito", diz Flor.

A partir de então, dizem os amigos, surgiu a ideia de reproduzir uma cena de um ataque racista. Eles confessam que tiveram medo das consequências da publicação e dizem que passaram dois meses avaliando a melhor forma para a publicação.

"Avisei aos meus familiares e amigos sobre o que faríamos, para que eles estivessem cientes, porque as ofensas seriam inevitáveis após o vídeo. Não sabíamos como as pessoas iriam reagir. Explicamos a eles que seria uma forma importante para dar voz ao projeto. Nossas famílias ficaram bem preocupadas, mas decidimos seguir em frente", diz Junior.

Para a cena reproduzida no vídeo, Flor conta que se inspirou em uma situação que viveu no passado, pouco após se mudar para Curitiba (PR), onde morou por alguns anos.

"Eu tinha 17 anos, precisava trabalhar e comecei a fazer faxinas em algumas casas. Como eu sempre gostei de cantar, fazia o meu serviço cantando baixinho. Depois de um tempo, soube, por conhecidos em comum, que os filhos da dona de uma das casas falavam coisas ruins sobre mim, criticavam o meu cabelo, o meu peso e o fato de eu cantar enquanto trabalhava", relembra Flor.

A jovem conta que os comentários dos filhos da ex-patroa são apenas alguns dos diversos exemplos de preconceito que ela sofreu ao longo da vida. Ela considera que o vídeo que viralizou se tornou uma forma de ilustrar situações que ela e outras pessoas negras passam ao longo da vida.

Após gravarem o vídeo, Flor e Junior criaram estratégias para que ele causasse repercussão. Por se tratar de um conteúdo polêmico e que causa repulsa, os jovens não tiveram muitas dificuldades para que logo se tornasse um viral. "Postei no Facebook, em alguns grupos. De repente, começou a ter muitos compartilhamentos, porque as pessoas ficaram revoltadas", diz Flor. No Tiktok, a gravação foi banida duas vezes, após muitas denúncias.

Logo, o vídeo passou a ser compartilhado em diferentes redes sociais. Em poucas horas, Flor viu o número de seguidores no Instagram saltar de quase 600 para mais de 100 mil. "Recebi muitas mensagens de carinho. Foi muito importante ter aquele apoio, ainda que naquele vídeo não se tratasse de uma situação real", afirma.

Muitas pessoas também procuraram o perfil de Junior, que foi alvo de diversas ofensas. "Chegaram a me mandar mensagens falando que se me encontrassem nas ruas, me bateriam. Mas isso não me abalou, porque sabia que não era diretamente para mim, era para o personagem do vídeo. Também recebi comentários de pessoas tentando me conscientizar", diz Junior.

"Particularmente, acho que quando a pessoa está errada, temos de conscientizá-la, não atacá-la", acrescenta o jovem. O ator ganhou cerca de 20 mil seguidores após o vídeo viralizar. "Acredito que muitos me seguiram por curiosidade, porque eu postei que me pronunciaria sobre o assunto", comenta.

Pouco mais de 24 horas depois da publicação do vídeo, os amigos compartilharam o vídeo no qual relatam que se tratou de uma encenação. A partir de então, Junior e Flor se tornaram alvos de críticas.

"Muitas pessoas que estavam me apoiando passaram a me criticar, porque não entenderam a nossa intenção", diz a jovem, que perdeu centenas de seguidores, que havia conquistado horas antes, após revelar o objetivo do vídeo. "Infelizmente, nem todos entenderam. Em nenhum momento fizemos o vídeo como brincadeira ou para ganhar seguidores, fizemos para dar voz ao nosso projeto contra o preconceito", justifica Junior.

"O nosso objetivo é conscientizar, por isso acreditamos que precisaríamos alcançar muitas pessoas. Não queremos que gerações futuras passem por tantos preconceitos, como o racismo e a homofobia. Se não fizermos algo agora e tentarmos conscientizar sobre esses assuntos, quem fará algo?", acrescenta Flor.

Apesar das críticas, Junior afirma que ficou aliviado por não ter ficado conhecido como racista. "Essa era a minha maior preocupação antes de divulgarmos o vídeo, porque isso (o racismo) definitivamente não faz parte da minha personalidade. Ficar conhecido assim poderia afetar minha carreira, que estou construindo. Mas as pessoas, ainda que critiquem o vídeo, entenderam que é uma encenação", comenta o ator.

Um dos riscos futuros é que a imagem dele no vídeo, que agora propaga pela internet, seja compartilhada em um contexto no qual não seja explicado que se tratava de uma encenação. Junior, porém, afirma estar tranquilo em relação a essa possibilidade. "Não acredito que esse vídeo vá me definir, até porque sou ator e estou disposto a assumir papéis que não têm a ver com os meus valores. De todo modo, terei todo esse projeto disponível para a pessoa assistir e saber a origem do vídeo", declara.

'TIRA A CREDIBILIDADE DE DENÚNCIAS DE RACISMO'

Nas redes sociais de Flor e Junior há alguns comentários elogiando o projeto. "Vocês estão mostrando a realidade de muitos que passam por situações iguais ou até piores. Estratégia forte, verídica e muito bem feita. Estou aplaudindo e parabenizando os dois e que muitos abracem a causa e o conteúdo em si", escreveu uma jovem.

Mas grande parte dos comentários são negativos. A historiadora e professora Keilla Vila Flor foi uma das pessoas que criticaram o vídeo. "Você não deve criar falsas denúncias a respeito de qualquer causa para dar visibilidade a ela. Na verdade, isso vai fazer com que as próximas denúncias sobre esse tema sejam invisibilizadas", disse, em seu perfil no Instagram.

Keilla conta à BBC News Brasil que soube do caso na noite do último sábado (7). "Quando vi, compartilhei. Estavam pedindo para seguir a menina para fortalecer o trabalho dela, por ela ter sofrido racismo e gordofobia. Então, fomos seguir, porque normalmente quem tem visibilidade é o racista, que ganha seguidores, fama e até pode virar político", diz.

Quando soube que era uma ação de marketing, Keilla afirma ter ficado revoltada. "Muitas pessoas se sentiram enganadas com a irresponsabilidade e com a engenhosidade da ação. Eles perceberam como o racismo opera e viram como dava para tirar vantagem disso", diz.

"Fiquei pensando: e se todos os artistas negros do Brasil, de uma hora pra outra, simulassem situações de violência para ganhar visibilidade no trabalho? Há milhares de artistas negros talentosos que não têm a visibilidade que deveriam ter", desabafa a historiadora.

Para Keilla, o principal problema do vídeo é a consequência que ele pode ter em futuras denúncias de racismo. "A descredibilização dessas denúncias existe há séculos no Brasil, pois muitos preferem dizer que elas são falsas. O racismo existe! Quando criam denúncias falsas, fomentam a descredibilização das verdadeiras", diz.

"Não duvido que a moça do vídeo tenha passado por racismo ou gordofobia. A questão é que se ela passa por isso, não tem motivos para simular algo. Há maneiras de trabalhar com isso em um vídeo", acrescenta.

Para a urbanista e escritora Joice Berth, pesquisadora sobre questões raciais e de gênero, o vídeo feito por Junior e Flor foi uma péssima ideia. "Achei um absurdo. Estamos em um momento do debate racial no Brasil onde tratamos dos efeitos psíquicos do racismo, o que causa à saúde mental das pessoas e sobre o grande número de suicídio entre jovens negros, muitos deles com histórico de ação policial racial ou outros tipos de racismo", pontua.

Ela comenta que vídeos como o da situação encenada por Junior e Flor costumam abalar a autoestima de pessoas negras. "Eles não pararam para pensar se iriam despertar algum gatilho, sofrimento ou angústia que as pessoas tentam lidar. Sempre que um caso grotesco de racismo acontece, jogam nas redes e tem uma repercussão maior. Isso envolve uma série de sofrimento e ansiedade na população negra, sobretudo os mais jovens, que ainda não têm jogo de cintura, preparo e fortalecimento da personalidade para lidar com essas questões. Por isso, muitas vezes tentamos levar palavras para levantar a autoestima desses jovens".

Mesmo que a encenação tenha sido feita por um rapaz homossexual e uma jovem negra, grupos que costumam estar expostos a séries de opressões, Joice considera que os dois não entenderam a gravidade do problema que tentaram retratar no vídeo.

"Esses jovens foram completamente infelizes. Sem contar que injúria racial é crime, previsto em lei. Não dá pra brincar com um crime. É como dizer: assassinei uma pessoa, mas era só para promover o meu trabalho", diz.

Ela opina que Junior e Flor deveriam ter avisado, no início do vídeo, que se tratava de uma dramatização. "Assim daria para compreender. Como não houve qualquer aviso (de que era uma encenação), muitas pessoas se mobilizaram para contestar esse caso e depois se sentiram como palhaças. Os fins não justificam os meios", declara.

"As pessoas não entendem que fazer sucesso, ter fama e ser útil para a sociedade são coisas que nem sempre estão juntas. Estão buscando fama vazia. Muitas pessoas negras, como a Karol Conka e o Emicida, conseguiram visibilidade na mídia com um caminho digno, sem ofender ninguém", declara.

Apesar das críticas, Joice afirma que Junior e Flor não devem ser alvos de ofensas. "Não vou demonizar essas coisas. São jovens e isso foi uma grande molecagem. Não entenderam o real problema. Precisam de conscientização", opina.

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