Vivos nos corações e na internet: como artistas que já morreram seguem 'postando' nas redes sociais
Entre as piadas postadas em um perfil de "memes" no Instagram, uma traz a mensagem: "Se gaia [chifre] fosse dinheiro, Recife era Dubai", em referência a um possível alto número de casos de traição na capital pernambucana.
Em meio a risos e marcações entre amigos na publicação, um comentário específico se destaca: "E eu seria um sheik". O autor da mensagem é o perfil oficial de Reginaldo Rossi, cantor e compositor recifense de brega que ficou famoso em todo o Brasil por cantar dores de cotovelo e exaltar a figura do "corno".
Mas esse comentário não foi feito anos atrás, quando o artista ainda era vivo e fazia seus fãs rirem com piadas durante os shows. O comentário de Rossi foi deixado em agosto de 2019, pelo perfil oficial na rede social.
Morto no fim de 2013 em decorrência de um câncer de pulmão, o cantor segue "vivo" nas redes sociais, respondendo fãs, participando de discussões em outros perfis e até fazendo piadas.
Apesar de estar escrito na descrição do perfil que a página é mantida por "amigos e familiares", o caso ilustra bem como a "marca" de um artista pode seguir ativa na internet mesmo após o seu falecimento.
A discussão sobre a relação entre fãs e páginas de personalidades que morreram também voltou à tona após a morte do apresentador da RecordTV Augusto Liberato, o Gugu, após uma queda em sua casa em Orlando, nos Estados Unidos.
Ferramentas de monitoramento de redes sociais mostram que o perfil do apresentador no Instagram ganhou mais de 1 milhão de seguidores nos dias que seguiram o anúncio do acidente e do falecimento.
Sem legislação específica no Brasil, a discussão sobre o uso de redes sociais de pessoas que já morreram é ampla. Quem pode acessar a conta? O perfil deve ser excluído? As respostas podem variar dependendo da rede social e da avaliação da Justiça sobre a prioridade de cada conta.
#NãoMorreu
Quando vivo, Reginaldo Rossi não era muito conectado às redes sociais. Nem chegou a entrar na era dos smartphones: usava um aparelho "old school, no estilo flip", relata o seu filho único, Roberto Rossi, à BBC News Brasil.
Cinco anos após a morte do cantor, porém, foi a hora de entrar na era digital. A ideia de Roberto não era recriar a personalidade do pai numa rede social, mas fazer uma homenagem a seu legado e deixar sua marca viva junto aos fãs.
O perfil, que hoje conta com mais de 21 mil seguidores só no Instagram, acabou chamando a atenção de outros internautas com comentários bem-humorados, alguns em primeira pessoa, em reportagens e páginas humorísticas.
"Se Recife fosse o Vaticano, quem seria o papa?", pergunta um perfil de humor. "Alguma dúvida?", respondeu o perfil de Rossi, levando internautas ao riso. E outra ocasião, um perfil pergunta no Twitter "Como vocês chamam o garçom?". Rossi responde: "Garçom", em brincadeira com o título de sua música mais famosa.
Em 2016, o filho do cantor, seu único herdeiro, discutia com amigos como manter a imagem de seu pai ativa na internet e uma forma de divulgar um documentário que seria lançado sobre ele: "Conversamos bastante sobre os perfis a serem seguidos, a forma de abordar e responder a posts de terceiros… E também procuramos observar a forma como meu pai lidava com as pessoas no dia a dia", explica Roberto.
A decisão de interagir com outras pessoas é, segundo o publicitário George Macedo, que hoje administra a página, a forma natural de alcançar os fãs que ainda não sabem da existência do perfil: "É uma espécie de 'museu' virtual. Não existe a pretensão de retratá-lo como se ele estivesse vivo", conta.
Para a verificação da página, Roberto teve que comprovar com documentos que tinha o direito sobre a imagem e obra artística do seu pai.
O Instagram informou à BBC News Brasil que a verificação de um perfil garante que se trata de uma página oficial, e não necessariamente que é aquela pessoa quem posta. No caso do perfil Reginaldo Rossi, como ele era uma pessoa pública e como o perfil seria mantido pela família e amigos, a empresa entendeu que o perfil poderia ser verificado, levando em consideração os direitos artísticos.
Roberto Rossi conta que, apesar de alguns fãs se surpreenderem quando descobrem que o cantor morreu, a interação gira em torno da admiração que eles têm pela obra de Rossi. Em uma ação de marketing, o perfil usa a hashtag #ReginaldoRossiNãoMorreu, compartilhando fotos de "flagras" de homens que se parecem com cantor nas ruas. Uma fã responde: "seria tão bom se fosse verdade".
Hebe
Não há uma regra sobre como as redes de pessoas públicas que morreram devem ser geridas. Se no caso de Reginaldo Rossi foi criada uma "persona" bem humorada que usa até a primeira pessoa nas mensagens, outros perfis utilizam o espaço mais para a divulgação de ações, produtos e mensagens saudosas.
Morta em 2012, a apresentadora Hebe Camargo também tem suas páginas oficiais atualizadas. Entre os posts, vídeos com momentos memoráveis da carreira e também divulgação da cinebiografia da artista, lançada nos cinemas em 2019.
No caso do ator Domingos Montagner, da Rede Globo, morto em 2016 após um afogamento no Rio São Francisco, em Sergipe, os perfis são utilizados para divulgar ações do instituto que leva o seu nome. A Casa Domingos Montagner, que tem o propósito de levar oportunidades educativas aos jovens por meio do circo e do teatro, busca financiamento para iniciar ações culturais em 2020.
Os cantores Mr. Catra, morto em 2018, e Cristiano Araújo, morto em 2015, são outros que ainda têm seus perfis oficiais atualizados.
Legal
No Brasil, ainda não há leis específicas que tratem do legado digital, mas há leis que podem ser relacionadas ao assunto, como as que tratam sobre o direito da personalidade, a sucessão de bens e o direito autoral.
De acordo a advogada Luiza Brandão, especialista em direito digital e diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (Iris), o principal aspecto da discussão é saber se "vamos entender se um perfil na redes sociais é a extensão da personalidade de uma pessoa ou se ele vai ser enxergado como um bem, uma herança, assim como carro ou uma casa…"
"Se essa rede social é pensada como uma extensão da nossa personalidade, é complicado que outras pessoas exerçam essa função. Mas, se esse perfil ou página é pensada como um bem material, como pode ser o caso de artistas, há outras soluções possíveis", explica a advogada, destacando que as páginas de pessoas públicas normalmente estão atreladas também a contratos com assessores e publicidade, por exemplo.
O Facebook informou à BBC News Brasil que páginas oficiais de artistas são enxergadas como uma "conversa pública", que pode ser gerenciada por várias pessoas. Assim, quando uma pessoa morre, a página pode seguir sendo administrada por pessoas que já tinham acesso ao perfil antes.
O Instagram também informou que, se um parente ou assessores já tinham acesso a uma conta, elas continuam com acesso e podem postar no perfil normalmente.
Luiza Brandão alerta, entretanto, que há recursos legais no Brasil que podem ser acionados para proteger a memória de uma pessoa que já morreu, em casos de publicações que possam desrespeitar a opinião e imagem do artista, por exemplo.
O que acontece com meu perfil quando eu morrer?
Apesar da falta de legislação e de ainda poucos casos levados à Justiça, existem os mecanismos das próprias plataformas para lidar com os perfis após a morte.
A advogada Luiza Brandão destaca que os casos envolvendo as redes sociais devem ser vistos de forma "completa", e não apartados da realidade: "A divisão entre mundo virtual e real é teórica. Na prática, somos a mesma pessoa, hoje está tudo entrelaçado".
No caso de um perfil pessoal no Facebook, o usuário pode tomar decisões em vida. Nas configurações, ele pode escolher um contato "herdeiro". Esse contato poderá gerenciar a conta após ela ser transformada em "memorial", podendo realizar ações como fixar uma publicação, responder às novas solicitações de amizade e alterar a imagem de perfil e a foto da capa.
Tanto no Instagram quanto no Facebook, amigos e familiares podem entrar em contato com a plataforma, comprovando o óbito de uma pessoa com documentos. Há duas opções de solicitação: o perfil pode ser apagado ou virar um "memorial". No caso do Instagram, se escolher a segunda opção, o perfil fica "congelado" e não aparece mais na busca. No Facebook, o contato herdeiro assume as funções.
Recentemente, o Twitter informou que está trabalhando para ativar o mecanismo de transformar contas de pessoas que já morreram também em memorial - e não apagá-las como contas inativas, quando não há mais atualização.
Para evitar problemas futuros, a advogada Luiza Brandão diz ser importante manifestarmos a nossa vontade sobre as redes sociais ainda em vida, seja deixando um contato herdeiro, a senha com alguém ou uma carta assinada: "O que a gente precisa entender é que nossos perfis e dados fazem parte da nossa vida e também vão fazer parte da nossa morte".
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