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Os naufrágios milenares que dão pistas sobre o mistério do dilúvio da Arca de Noé

Usando veículos operados remotamente, os arqueólogos revelaram peças históricas antigas nunca observadas de forma tão vívida
Usando veículos operados remotamente, os arqueólogos revelaram peças históricas antigas nunca observadas de forma tão vívida - BBC News Brasil/Rodrigo Pacheco Ruiz
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Descrição de chapéu BBC News Brasil
Matthew Ponsford

A cidade velha de Nessebar é quase uma ilha: suas casas de madeira desgastada pelo tempo, com telhados de terracota sobre estruturas de pedra, são conectadas à costa búlgara por uma faixa de terra estreita. Este local com mais de 3.000 anos de história é reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como patrimônio mundial.

Ao entrar na cidade velha, as ruas sinuosas abrigam casas de pescadores do século 19, a igreja medieval de Santo Estêvão e as ruínas de uma catedral do século 5, quando a cidade era um dos mais importantes centros comerciais bizantinos da costa do mar Negro.

Arqueólogos e pescadores locais já encontraram ali relíquias ainda mais antigas. Uma acrópole e cerâmica gregas datam de antes da chegada dos romanos, e há muros construídos pelos fundadores da cidade, os trácios, que governavam a península dos Bálcãs há mais de 2.000 anos. Mas, para encontrar os artefatos ainda mais surpreendentes, é preciso sair da ilha e entrar no mar à sua volta.

NAUFRÁGIOS ESTRANHAMENTE PRESERVADOS

Recentes expedições de pesquisa oceanográfica usaram veículos subaquáticos operados remotamente para se aventurar sob as águas do mar Negro e revelaram peças da história antiga nunca antes vistas de forma tão vívida.

Essas missões descobriram navios milenares de comércio marítimo e guerra, incluindo o mais antigo naufrágio intacto do mundo: um navio comercial grego de cerca de 400 a.C., que está estranhamente bem preservado. Entre os destroços, novas evidências oferecem pistas de como era a região há 7.000 anos, quando alguns especialistas acreditam que o mar Negro era apenas um pequeno lago de água doce.

Amostras geológicas obtidas do fundo do mar poderiam, finalmente, resolver o mistério de se foi por ali que as águas adentraram, acabando com civilizações e criando uma história que conhecemos hoje como a saga de Noé e do grande dilúvio bíblico.

Zdravka Georgieva, arqueólogo marítimo do Centro de Arqueologia Subaquática da Bulgária, nasceu em Nessebar e aprendeu a mergulhar no mar Negro.

"Queria realmente saber o que há sob a água", diz Georgieva, que ouviu falar pela primeira vez dos resquícios inexplorados de antigos assentamentos e naufrágios no pequeno Museu Arqueológico de Nessebar, que abriga uma quantidade considerável de artefatos históricos. "Soube por meio do museu e das pessoas daqui que existem objetos históricos submersos e queria tocá-los e observá-los de perto."

Depois de estudar no centro de pós-graduação em Arqueologia Marinha da Universidade de Southampton, no Reino Unido, Georgieva trabalha hoje em seu "emprego dos sonhos" como membro do Projeto de Arqueologia Marítima do mar Negro, que busca descobrir como o mar e seus arredores mudaram desde a última era glacial ali, ao examinar o fundo do oceano.

A equipe anglo-búlgara, liderada pelo professor Jon Adams, da Universidade de Southampton, na Inglaterra, em parceria com o Centro de Arqueologia Subaquática, descobriu o navio comercial grego de 2,4 mil anos no ano passado e mais de 60 naufrágios encontrados em águas profundas.

O antigo navio estava de lado, com o mastro e o leme claramente visíveis, assim como os bancos usados por remadores e recipientes de cerâmica. Georgieva diz se tratar da "descoberta mais espetacular —até agora". Ele concorda com outros arqueólogos marinhos de que estamos entrando na era de ouro das descobertas na região do mar Negro.

Os arqueólogos sabiam que civilizações antigas haviam sido erguidas na região e que navios comerciais haviam circulado pela costa do mar Negro. Mas, até agora, a tecnologia de imagem ainda não era avançada o suficiente para fornecer uma boa visão do fundo do mar, fazendo com que qualquer coisa que estivesse ali permanecesse envolta em mistério.

"Sabíamos de fontes históricas que havia ocorrido uma colonização da costa do mar Negro, da Grécia e do Mediterrâneo, mas não havíamos descoberto nada que se assemelhasse a navios. Por quê? Onde estavam? Por que não os encontrávamos?", questiona Georgieva."Os últimos quatro anos representaram um grande avanço na maneira como investigamos o mundo submerso e naufrágios."

A CAMADA ANÓXICA DO MAR NEGRO

O fato de que navios preservados podem ser encontrados aqui é devido a um fenômeno aquático único, explica o oceanógrafo americano Bob Ballard, que liderou a descoberta dos destroços do Titanic em 1985.

Ele sempre foi fascinado com a chamada "camada anóxica" do mar Negro: uma faixa de águas frias e sem oxigênio que existe sob as águas mais quentes e familiares aos visitantes da região. "O mar profundo é um museu gigante", diz Ballard.

Como apenas alguns tipos de bactérias sobrevivem nesta camada anóxica, tudo fica preservando por milênios como estava momentos após um naufrágio.

Entre 1999 e 2014, Ballard liderou uma expedição ao mar Negro e ao Mediterrâneo que foi a primeira a explorar de maneira abrangente esse reino das sombras. Com sua tripulação, descobriu dezenas de embarcações perfeitamente preservadas, incluindo um barco comercial otomano que continha restos humanos.

"Foi um esforço de 15 anos para realizar várias expedições, tentando mostrar que [os marinheiros antigos] eram muito mais ousados do que os historiadores lhes davam crédito, que percorriam rotas comerciais em águas profundas e não ficavam apenas próximos da costa, mas cruzavam o oceano."

Georgieva e Ballard dizem que a exploração em alto mar fornece novas pistas para um mistério talvez ainda maior.

No livro Noah's Flood (O Dilúvio de Noé, em tradução livre), de William Ryan e Walter Pitman, geólogos marinhos relatam acreditar ter encontrado a origem histórica das lendas de uma grande enchente que destruiu civilizações antigas que margeavam o Mediterrâneo e o mar Negro há 7.600 anos.

Contada no mito da criação babilônica, o Enuma Elish, e na Epopéia Mesopotâmica de Gilgamesh, um antigo poema épico da que é considerada uma das primeiras obras conhecidas da literatura, a história se tornou mais conhecida em todo o mundo como a história bíblica da Arca de Noé.

Segundo Ryan e Pitman, há cerca de 20 mil atrás, o que é agora o mar Negro era separado do Mediterrâneo por uma paisagem montanhosa. A teoria do dilúvio de Noé aponta que, quando a última era glacial da Terra terminou, o derretimento das calotas polares fez com que as águas do Mediterrâneo se elevassem, formando um canal pelas montanhas para formar o que agora é o Bósforo, resultando em um dilúvio catastrófico. Em meses, o mar Negro teria inundado uma área do tamanho da Irlanda.

Em 2000, Ballard esperava lançar luz sobre a teoria de Ryan e Pitman quando descobriu uma costa e edifícios de civilizações humanas submersos a 20 quilômetros do litoral turco no mar Negro. Ele acreditava que essas descobertas corroboravam a hipótese da inundação.

Mas o Projeto de Arqueologia Marítima do mar Negro aponta em uma direção diferente, explica Georgieva. "Os geofísicos e outros especialistas do centro oceanográfico de Southampton dizem que não há evidências que apoiam essa teoria. O que coletamos não prova essa inundação catastrófica. Os dados apontam ter sido mais provável um aumento gradual do nível do mar."

Ainda há mais dados a serem analisados, mas até o momento tudo indica que as águas subiram imperceptivelmente, metro a metro, ao longo de séculos ou mesmo milênios.

Ainda assim, Ballard chama o mar Negro de um "lugar mágico", uma área com "uma quantidade de evidências históricas incrível", que tem mais a oferecer aos arqueólogos e fãs de lendas do que a conexão com o dilúvio de Noé. "Há muito mais a ser descoberto no mar Negro. Acho que o mar Negro produzirá ainda muitas revelações sobre a história da humanidade se soubermos onde e como procurar."

BBC News Brasil
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