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Viva Bem
Descrição de chapéu BBC News Brasil alimentação

A chef de cozinha que se alimenta por sonda nasal e nunca mais vai poder comer

A chef de cozinha Loretta Harmes não come nada pela boca há seis anos
A chef de cozinha Loretta Harmes não come nada pela boca há seis anos - BBC News/Amy Maidment
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Kirstie Brewer
BBC News Brasil

Loretta Harmes não come nada pela boca há seis anos. Por causa de um distúrbio, ela só consegue se alimentar por sonda, mas não perdeu sua paixão por cozinhar.

Mesmo sem poder provar suas receitas, Loretta tem muitos seguidores no Instagram. Na rede social ela é conhecida como "nil-by-mouth foodie" —"foodie" é um termo para pessoas que apreciam fortemente a culinária e "nil by mouth" é uma expressão que significa "nada pela boca".

A jovem lembra até hoje da última refeição que fez na vida, em 2015. Ela deu uma mordida em uma batata assada e apreciou o sabor e a textura macia. Sua mãe e ela tinham dado atenção aos mínimos detalhes porque sabiam que Loretta nunca mais iria ingerir nada sólido.

Em questão de minutos, uma dor iria tomar conta do seu estômago. A dor era familiar para ela e aparecia toda vez que ela comia ou bebia qualquer coisa. Em seguida, ela se sentia dolorosamente cheia e passava mal. Como se seu estômago tivesse sido esticado até o ponto de estourar.

Mas, naquele dia em 2015, Loretta tentou ignorar a dor para aproveitar o momento na cozinha da família —o local onde ela havia treinado suas habilidades culinárias desde criança. "Sentar para comer com minha mãe e minha irmã parecia surreal e sensacional", diz ela à BBC News. "Tentamos agir como uma família normal para variar."

Loretta tinha 23 anos e já sobrevivia à base de uma dieta líquida havia anos. Ela quase nunca se juntava à sua família na mesa de jantar. Até segurar um garfo e uma faca parecia estranho —mastigar uma batata e um frango temperado com alho e limão, então, nem se fale.

Naquele dia, ela estava comendo a pedido médico. Um especialista em sistema digestivo havia pedido para que ela comesse algo sólido para entender porque se alimentar deixava a jovem naquele estado. Além de tudo, depois ela não conseguia ir ao banheiro por semanas e até meses.

Loretta tinha ido ao Hospital St. Mark, em Londres, naquele mesmo dia para ter um tubo laranja inserido até o seu intestino delgado através do seu nariz. O procedimento tinha o objetivo de checar as funções do seu sistema digestivo.

Finalmente, depois de anos sendo desacreditada e recebendo diagnósticos errados, alguém estava investigando seriamente seus problemas de saúde. Quando Loretta era criança, ela e sua babá, Mavis, cozinhavam receitas de um programa de televisão britânico.

"Mavis era a rainha da confeitaria, e os bolos de aniversário que ela fazia eram lendários", conta Loretta. "Eu e minha irmã, Abbie, brigávamos para ver quem iria lamber o resto da massa de bolo no pote."

Muitas das histórias da jovem sobre comida estão cheias de memórias alegres e carinhosas da vida em família. Toda quinta a família toda ia para a casa de Mavis para uma refeição. Loretta lembra com carinho de sentar ao redor de uma enorme mesa de jantar e comer assados e mousse e framboesa.

"Todo mundo tomava cuidado para não deixar meu avô, Eric, pegar o pote de molho primeiro, senão não ia sobrar nada para o resto da família", conta ela.

COZINHANDO DESDE CEDO

Aos 11 anos, Loretta já fazia o jantar para a família toda terça-feira, quando sua mãe trabalhava até tarde. A mãe tinha um salão de cabelereiro na garagem e as clientes já tinham se acostumado com a menina entrando de vez em quando com uma colher da molho para a mãe provar.

"Eu tinha total liberdade na cozinha e amava a ideia de criar algo do zero para a minha família experimentar", diz. Ela começou a cozinhar imitando a receita de macarrão com tomate da mãe, mas logo já estava fazendo tortas e ensopados. Suas almôndegas e sua salada com frango eram os favoritos da família.

No ensino médio ela ganhou competições de culinária, competindo com alunos mais velhos, e chegou a competições regionais. Enquanto outras crianças faziam macarrão, Loretta fazia boeuf bourguignon (uma receita francesa de picadinho de carne com vinho) e lombo de porco marinado.

A mãe da jovem, Julie, diz que Loretta era —e ainda é— uma cozinheira muito bagunceira. Do tipo que usa todas as panelas, frigideiras e utensílios disponíveis na cozinha. Mas Julie não se importava porque via o quanto a jovem amava aquilo. "Ela era muito criativa, amava fazer um prato com o que quer que tivéssemos no armário", diz Julie.

TRANSTORNOS ALIMENTARES E TORTURA

Quando tinha 15 anos, Loretta teve anorexia, mas ela diz que o transtorno durou menos de um ano. De vez em quando, durante a adolescência, ela também tinha problemas digestivos. Mas durante a maior parte dessa fase da vida ela ainda conseguia cozinhar e comer alegremente, com Julie bancando a assistente de cozinha sempre que Loretta não consegue fazer tudo sozinha.

Quando terminou o colégio, Loretta conseguiu uma vaga em uma das melhores faculdades de gastronomia de Londres, onde estudaram chefes famosos como Jamie Oliver e Ainsley Harriott. O curso durava três anos, mas ela só conseguiu completar um ano por causa de sua saúde.

Aos 19 anos, o que era um incômodo contornável virou uma dor que a deixava de cama. "As coisas pioraram dramaticamente. Eu não conseguia comer ou ir ao banheiro, e então os próximos cinco anos se tornaram um pesadelo do qual eu não conseguia acordar", diz.

O pesadelo começou com um médico que dizia que a rápida perda de peso de Loretta só poderia ter sido causada pelo retorno de sua anorexia. Por causa disso, Loretta passou mais de dois anos internada em clínicas para pessoas que sofrem transtornos alimentares. Ela chegou a pesar menos de 30kg.

Obrigar-se a comer para ganhar peso parecia-lhe a única saída, embora a dor que isso causava fosse forte. Seu desespero às vezes se transformava em raiva e ela sofreu várias intervenções judiciais, que a impediram de sair da internação por um total de 18 meses.

"Eu dizia a eles repetidamente que a única razão pela qual eu estava deprimida era por causa dos meus problemas intestinais e estomacais, mas eles não acreditavam em mim", conta.

Um dos diagnósticos que recebeu foi de "transtorno delirante". Loretta tentou suicídio várias vezes por causa da desesperança que sentia por não ter nenhum tratamento para sua dor. A vida nas unidades era um ciclo desolador e implacável de pesagens —a primeira às 6 da manhã— exames de sangue e alimentação.

Os pacientes tinham seis refeições por dia —três refeições principais e três lanches. Todas elas tinham um tempo no qual deveriam ser terminadas. Havia um rádio tocando, e a música era desligada quando o tempo se esgotava. Loretta se via olhando para a comida que restava no prato. Frutas em conserva e iogurte ou vegetais cozidos com carne processada.

Ninguém era autorizado a sair da mesa enquanto ela não terminasse, e ela diz que funcionários e pacientes faziam pressão e bullying para que ela se apressasse. Depois de cada refeição os pacientes passavam uma hora sendo observados de perto em uma sala para garantir que eles não tentariam vomitar a comida que tinham acabado de ingerir.

Na maior parte dos dias Loretta apenas se encolhia em uma cadeira, tentando aliviar a dor que sentia. Outros pacientes pintavam livros de colorir ou assistiam a televisão. Uma mulher, que Loretta diz que vivia há 13 anos entrando e saindo desse tipo de instituição, gritava sem parar. Mas ninguém tinha permissão para sair da sala.

Loretta diz que na maior parte dos dias ela própria tinha vontade de gritar, especialmente quando ela estava sob intervenção judicial e um funcionário da instituição ficava ao lado dela durante dia e noite, durante semanas.

"Eu ansiava por paz e silêncio", diz ela. "Eu me recuperei da anorexia, mas o que era uma lição de vida foi transformado em uma sentença de prisão perpétua."

ENFIM UM DIAGNÓSTICO

Anos depois, a reação de Loretta às batatas assadas ajudariam a chegar ao diagnóstico de hipermobilidade (flexibilidade de ligamentos e articulações fora do habitual) da síndrome Ehlers-Danlos, uma condição genética que pode se manifestar de diversas formas.

O que os testes mostraram é que o estômago de Loretta estava parcialmente paralisado e não podia se esvaziar corretamente. Confiná-la em uma unidade segura e forçá-la a comer se mostrou sem sentido.

Seus outros sintomas incluem dor de cabeça, fadiga, taquicardia quando se senta ou se levanta e uma dor no pescoço que deve ser alvo de uma cirurgia no futuro. Até recentemente, há pouca pesquisa em torno dos 13 tipos da síndrome Ehlers-Danlos, incluindo este relacionado à hipermobilidade, e ainda há diversas lacunas sobre eles.

O que é a Síndrome de Ehlers-Danlos?

Fonte: Ehlers-Danlos Society

  • As síndromes de Ehlers-Danlos são um grupo de 13 doenças que afetam o tecido conjuntivo. É um tecido que sustenta, protege e dá estrutura a outros tecidos e órgãos do corpo. Ele é encontrado na pele, nos ossos e nos ligamentos, por exemplo.

  • No caso de Loretta, há danos ao tecido conjuntivo na parede do intestino e, como resultado, a comida viaja com menos suavidade pelo sistema digestivo. (A paralisia do estômago é uma condição separada, mas ligada.)

  • As síndromes são geralmente caracterizadas por articulações que se estendem mais do que o normal (hipermobilidade articular), pele que pode ser esticada além do normal (hiperextensibilidade da pele) e fragilidade do tecido.

  • Um efeito colateral de ter uma pele elástica é sua aparência macia e jovem. "Minha pele é como massa de pizza e tão macia, então há algumas vantagens!" diz Loretta.

Em média, leva de 10 a 14 anos para alguém ser diagnosticado, explica Alan Hakim, da Sociedade Ehlers-Danlos, porque os sintomas são muito variados e aparentemente não indicam ligação entre eles.

"Uma pessoa pode se ver sendo consultada por médicos e terapeutas para cada um dos problemas, sem haver uma análise panorâmica de todos eles." E acrescenta: "É preciso que alguém ligue os pontos até a ficha cair de que isso é uma síndrome".

Hakim afirma que o cenário tem melhorado à medida que a síndrome se torna mais conhecida. Seis anos depois de sua última refeição, Loretta sabe que ela nunca mais vai comer ou mesmo beber um copo de água de novo.

Atualmente ela se alimenta via nutrição parenteral total (NPT), o que significa que ela fica conectada até 18 horas por dia a uma sacola de alimentação líquida que dribla seu sistema digestivo e vai direto para a corrente sanguínea. Um tubo conhecido como cateter de Hickman passa por seu tórax e chega a uma grande veia que drena para o coração.

Loretta pode ser vista em sua conta de Instagram, the.nil.by.mouth.foodie, com sua bolsa de alimentação, que ela customizou para ter mais autonomia. Ela é conhecida por pedir às pessoas que segurem a bolsa enquanto ela dança numa balada, por exemplo, algo que funciona bem se a companhia se mantiver próxima de Loretta.

Mas a nutrição parenteral total é algo sensível, e até mesmo um grão de poeira pode levar à contaminação do cateter. Ela já teve diversas vezes sepse, uma reação à infecção que pode causar falência de órgãos ou mesmo a morte. "Ainda assim, apesar das limitações, a NPT me dá mais do que me tira."

Antes, Loretta se sentia tão fraca que passava a maior parte do tempo na cama. Seu corpo estava tão carente de nutrição que seus ossos se tornaram frágeis e porosos como um favo de mel, e seu ciclo menstrual se encerrou completamente. Mas o pior de tudo era a dor constante.

"A NPT recuperou meu peso e me deu energia. Foi bom usar roupas normais novamente e não ter que fazer compras na seção infantil", diz.

Essa melhora em sua saúde permitiu que ela revivesse sua paixão por cozinhar, embora, para conservar energia, ela às vezes cozinhe em etapas e se mova pela cozinha em uma cadeira com rodas. Ser uma chef que não come deu a ela uma plataforma única no Instagram.

Amy, uma fotógrafa profissional que mora com Loretta, tira as fotos dos processo e dos pratos e prova a comida. Desde os primeiros dias do lockdown na pandemia, elas começaram a construir um negócio a partir disso, trabalhando com marcas no desenvolvimento de receitas e estilo de alimentos.

"A razão pela qual eu não fico louca por não ser capaz de comer é porque estou muito aliviada por estar livre da dor depois de tantos anos", diz Loretta. "Tenho prazer em cozinhar em si. Estar na cozinha é uma verdadeira saída criativa para mim. Se eu estou ansiosa ou preocupada, assim que eu começo a cozinhar isso vai embora porque estou muito concentrada no prato que estou fazendo."

Amy está feliz de ser uma das pessoas que comem as criações de Loretta. Lasanha de mac n'cheese. Torta de limão e abacate com crosta de noz-pecã. Torrada de couve-flor gratinada.

Como ela não pode provar a comida enquanto cozinha, Loretta passa muito tempo planejando e preparando de forma bastante metódica. Ela se baseia nos anos que passou estudando livros de receitas e fazendo experiências na cozinha, e em sua intuição. "Eu cozinho com meus olhos, nariz e instinto", diz ela.

Inalar o cheiro de um molho borbulhante ativará sua memória do sabor e seus olhos poderão julgar a profundidade e a riqueza dele. Algumas pessoas que dependem do NPT, como Loretta, mastigam e cospem, mas isso nunca a atraiu. "Na verdade, não desejo o sabor da comida em si, é do conforto dela que sinto falta e das memórias do que a comida significa."

"Sorvetes na praia, chocolate quente em um dia frio, assado com minha família no Natal." Pepino continua sendo cheiro favorito dela porque a lembra dos piqueniques de sua infância. "Muito do que fazemos socialmente é em torno de comida. Às vezes ainda me sinto estranha. Ainda vou aos jantares de aniversário das pessoas ou saio para 'tomar' um café ou 'beber', só não posso participar do evento comendo e bebendo."

Quase todas as suas lembranças felizes de comida são de sua irmã, Abbie. Ela ficou tão impressionada com a experiência traumatizante de sua irmã mais velha em unidades de transtornos alimentares que decidiu trabalhar em um hospital de saúde mental para crianças.

Durante a última refeição de Loretta, Abbie estava lá capturando o momento em seu smartphone e ajudando a torná-lo especial. Em 2019, junto com sua mãe, Julie, Abbie visitou Loretta no hospital, onde ela se recuperava de outro ataque de sepse. Mas, tragicamente, Abbie morreu em um acidente de carro a caminho de casa. Ela tinha apenas 23 anos.

"Ela fez muita diferença na vida de outras pessoas e sua própria vida estava apenas começando a florescer", diz Loretta. Ela sente que deve viver pelas duas agora e isso a estimula a aproveitar ao máximo sua vida.

MAIS UMA VEZ NO HOSPITAL

A última vez que falei com Loretta ela estava no hospital se recuperando do nono episódio de sepse desde o início da NPT. Deitada na unidade de insuficiência intestinal, ela sonha com as receitas que fará quando se recuperar e voltar para seu apartamento em Bournemouth.

"A primeira coisa que vou preparar quando voltar para a cozinha é um café da manhã farto e saudável", ela me diz de sua cama. Ela ganhou uma máquina de waffles no Natal e mal pode esperar para usá-la. "Vou fazer waffles de batata-doce cobertos com espinafre refogado e cogumelos, abacate amassado, tomate-cereja torrado com molho balsâmico."

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